Neca recorda episódio com Jorge Costa: "Era lixo no ar a voar por cima das cabeças"
Neca, antigo médio, agora adjunto de Rui Duarte no Marítimo, está feliz pelo regresso à Madeira e tem uma meta. Sempre ligado aos clubes onde jogou, viajou de Faro para os Barreiros, onde assumiu funções técnicas, no quinto cruzamento de vida com Rui Duarte. E está esperançado em viver dias felizes no Marítimo.
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Neca foi um jogador feito no Belenenses, mas com ligação a outros históricos enquanto jogador. Representou Marítimo, V. Guimarães, V. Setúbal e Farense, encerrando a carreira como médio de grande recorte e recorrentes golos no Algarve. Fez ainda muitos e bem-sucedidos anos na Turquia. Vai marcando agora terreno nos bancos, tendo aceitado o desafio de se juntar a um velho amigo, Rui Duarte, para rumar ao Marítimo na ansiosa missão de fazer dos Barreiros novamente palco de I Liga. Isto depois de uma inesperada saída de Faro, onde coadjuvou Jorge Costa e José Mota. O primeiro passo foi ajudar a fazer despontar nos sub-23 do Belenenses SAD, em 2018/19, Tomás Ribeiro, Francisco Teixeira, Robinho e Kikas.
“Reuni experiência e muitos ensinamentos de vários treinadores que passaram pelo Farense. Gostava de ser treinador principal, mas não descarto voltar a ser adjunto, pois não sabemos o futuro”, afirmava, pouco antes de responder positivamente a Rui Duarte. “Fomos colegas no Belenenses e no Farense, fui treinado por ele no Farense e já fui seu adjunto no Casa Pia. Há uma sensação muito boa de estar com ele, e também de voltar ao Marítimo. A grande esperança é mesmo colocar este grande clube onde merece estar e de onde nunca devia ter saído”, explicou. A recente vitória em Mafra estabilizou o Marítimo e dois jogos em casa, até ao final do ano, com Torreense e Oliveirense, podem devolver a visão da subida.
Na conversa com o antigo médio não se apaga uma marca ainda deixada em Belém como técnico. “Foi uma geração fantástica e que foi aproveitada na primeira equipa da B SAD. O objetivo era esse, alimentar a equipa acima”, partilha. Neca é apologista de uma intimidade e harmonia com o grupo.
“Os treinadores que retiraram o melhor de mim ficaram na memória. É algo que me acompanha. Gosto de equipas audazes, com coragem de ter a bola, objetivas na procura do golo. Mas também sou próximo dos jogadores, gosto de falar com eles, que me digam o que sentem ou o que faz falta. Vejo isso como uma grande virtude, pois procuro entendê-los para que se trabalhe com alegria”, vinca, preparado para colocar de lado o divórcio com o Farense no final de 23/24.
“Foi uma saída difícil e com a qual não contava. O míster José Mota esperava que eu continuasse, foi sempre assim com outros técnicos. Depois de alguns anos no Farense, clube ao qual já tinha forte relação, onde dei tudo e sempre havia sido bem tratado, o presidente achou que estava na altura de eu partir. Ele disse que eu não fazia falta, ou que já não era preciso. Deixou-me magoado, mas levantei a cabeça”, recorda.
Velho soube esperar
O antigo médio centra-se no que viveu nos leões de Faro, entre resultados, a harmonia no grupo e atletas que se evidenciaram. “Foram emoções fantásticas, conseguimos uma subida que não foi nada fácil e, na época passada, foi um campeonato tranquilo e muito positivo. Foram duas experiências ótimas, com um excelente grupo de jogadores”, realça, olhando ao elo mais transcendente: Ricardo Velho. “É um excelente profissional, de grande humildade. Já é um atleta de excelência e está sempre pronto a aprender. Trouxe frutos para ele e para o Farense. A chamada [à Seleção] chegou e é justa, pelo campeonato fantástico que fez. Talvez pudesse ter sido mais cedo, mas não podemos esperar que as coisas cheguem no nosso tempo. Foi agora, e ele soube esperar, trabalhando sempre nos limites. Essa foi a grande virtude, aliada a uma capacidade mental fortíssima”, gaba. “Gosta de aprender, é humilde, de bom trato. O que está a viver é totalmente merecido. Tem potencial para muito mais, pode encaixar nos três grandes ou numa das melhores ligas europeias”, avisa ainda sobre o guarda-redes do Farense, destacando também a “irreverência que conquistou toda a gente” de Belloumi e “amigo fantástico”, que foi Fabrício Isidoro.
Cinco escudos de eleição na vida
Neca pode gabar-se de só ter jogado em históricos. “Foi uma honra. O Belenenses teve mais impacto, foram 16 anos, de pequenino até aos 24. Formei-me aí como jogador e homem. Vivi coisas muito boas, fui internacional sub-20, sub-21 e A, atingi o auge da minha carreira. Está no coração! No Vitória apanhei um clube de Liga Europa, conheci uma massa adepta exigente e fervorosa. Fiquei apaixonado pelo clube, onde mantenho grandes amizades. No Marítimo a passagem foi curta, mas fiquei maravilhado com a ilha. Ao V. Setúbal estarei eternamente agradecido, mesmo que tenham sido anos de tremendas dificuldades financeiras, os jogadores tiveram de se unir muito para que o clube não caísse. Dei tudo por aquele símbolo e foi uma honra ter sido treinado pelo Manuel Fernandes. E ainda tinha o Conhé, o meu sogro, como treinador dos guarda-redes”, lembra. “Mais tarde, depois de ter voltado da Turquia, surge o convite do Farense e vieram outros momentos fantásticos. Tive a fortuna de ser capitão e lidei com outra massa associava fenomenal. Quem é de Faro era só pelo Farense. Se viam um jogador a dar tudo, apoiavam imenso. E acabei por terminar a carreira no mítico Estádio Nacional”, recorda.
Jorge Costa chutou o balde
Neca guarda relação de trabalho fantástica com o agora diretor do futebol profissional do FC Porto
Neca tem uma experiência muito forte com Jorge Costa. O tempo passado em Faro ao lado do agora diretor-geral do futebol do FC Porto deixou marcas inestimáveis. “Quando ele chegou, só o conhecia de o ter defrontado, de termos sido adversários e de algum estágio da Seleção. Não tinha muita confiança e sentia dificuldades em falar com ele nos primeiros dias. Vinha tudo desse respeito, do que ele foi como jogador. Mas logo me pôs à vontade e vi alguém totalmente diferente da imagem que tinha do adversário enquanto jogador. Posso dizer que foi das melhores pessoas que apanhei no futebol. Calmo, divertido, ponderado e observador. Os jogadores gostam dele, porque apoia-os muito e faz questão que sintam isso. Apesar dessa tranquilidade, quando tinha de falar alguma coisa, a sua voz e presença metia toda a gente em sentido. É de uma liderança leal e verdadeira, tudo o que transmite é verdadeiro e sentido. Sempre vi os jogadores a darem tudo por ele. Gostei muito de o conhecer”, evidencia, ciente do apelo transcendente do FC Porto.
“Ele adorava estar no banco como treinador, mas também percebo que não podia dizer que não a uma chamada do presidente do FC Porto. Interrompeu a profissão, mas está no clube do coração; o coração falou mais alto, ele tinha de aceitar e, seguramente, é alguém que vai passar toda a mística do FC Porto”, confia Neca, recuperando um capítulo da força e do caráter do treinador.
“Tem um passado que fala por si, um amor pelo clube que todos reconhecem. Vai saber passar tudo o que importa a quem trabalhar com ele. Todas as semanas tínhamos coisas divertidas no Farense, que ficam marcadas na memória. Mas vou lembrar um jogo em que estivemos muito mal na primeira parte. A equipa não tinha sido aquilo que ele queria; ao intervalo, no balneário, ele esperou que todos se acalmassem e parecia que ia falar normalmente, porque nunca foi de levantar a voz ou intimidar. Bastava só a sua presença para meter respeito e calar toda a gente. Nesse dia, ele chega, os jogadores estão sentados, e de repente sai um caixote do lixo a voar com um pontapé dele. Era lixo no ar a voar por cima das cabeças. Houve algum pânico, porque não era habitual. Aconteceu porque ele não se reviu em nada do que vira em campo. Fiquei admirado, nunca tinha visto uma atitude daquelas, mas os jogadores sentiram que tinham de mudar a história do jogo e, com outra atitude, deram a volta. Durante a semana já nos rimos um bocado mas, na altura, foi inesperado e caricato”, recorda Neca.
As rezas e a picanha turca
Neca esgravata a passagem pela Turquia. “Só tenho recordações fantásticas! Não estava habituado à cultura, ao que pensavam, pouco sabia também do futebol. Encontrei um treinador que retirou o melhor de mim, percebeu-me rapidamente e acabei ídolo no Konyaspor. Ainda recebo chamadas de dirigentes e adeptos. As minhas exibições aí levaram-me ao Ankaraspor. Também foram tempos muito bons, numa cidade já mais europeia. Mas, apesar de os turcos serem doidos em geral no apoio às equipas e aos jogadores, não senti tanto a febre de Konya em Ankara”, recorda Neca, rindo-se com o desafio de lembrar alguma experiência mais surreal. “No meu primeiro jogo na Turquia, na Taça, contra o Trabzonspor, fiquei com um turco no meu quarto. Fui descansar, o jogo era no dia a seguir, e durante a noite sinto muito barulho no quarto, fiquei apavorado; era ele, já com tapete estendido, a rezar no por do sol. Fui-me habituando a essa cultura religiosa, às rezas cinco vezes por dia. Os treinos tinham até horas estranhas por causa disso”, conta, puxando outra fita com o amigo Zé Gomes, antigo lateral do Rio Ave e Marítimo... “Tínhamos um complexo onde jantávamos cedo e, com esse hábito, era costume ter fome pelas 23 horas. Recordo-me que um dia, com ele, em que fomos atacar o frigorífico e encontrámos picanha, decidimos cortá-la e usar o grelhador elétrico. À meia-noite comíamos picanha com arroz e feijão. Sempre que estamos juntos rimo-nos muito dessas peripécias”.
Seleção: dois jogos feitos em 2002
Neca foi internacional por Portugal no breve consulado de Agostinho Oliveira, aposta de transição no comando da Seleção das Quinas, entre António Oliveira e Scolari. Foi premiado pelo brilhantismo no Belenenses de Marinho Peres, decorria a época 2002/03. Atuou contra Escócia e Tunísia ao lado de Figo, Rui Costa, Sérgio Conceição ou Pauleta.