Mielcarski, os "cheques ao almoço" e a lição de vida do balneário do FC Porto: "Foi aí que aprendi..."
Declarações do antigo avançado polaco do FC Porto em entrevista
Corpo do artigo
Em entrevista à TVP Sport, Mielcarski, antigo avançado do FC Porto, recordou os tempos no clube português.
"Vivi a época dourada do FC Porto? Uma de muitas. No coração do clube estão os adeptos e a cidade, mas o cérebro e a batuta é do presidente Pinto da Costa, foi ele que traçou o caminho e o objetivo. O FC Porto não é um grande clube à escala europeia, mas já ganhou a Taça dos Campeões Europeus, o Campeonato do Mundo, a Liga Europa duas vezes, a Supertaça Europeia uma vez. Tem mais troféus europeus do que os três grandes gregos - Panathinaikos, Olympiakos e AEK [clube onde também jogou] - juntos. E é mais ou menos o mesmo nível. Não foi por acaso", comentou.
Antes de chegar ao FC Porto, Mielcarski esteve no Servette, com Oliver Neuville e Sonny Anderson (internacionais alemão e brtasileiro), mas garante que o salto para Portugal foi muito maior: "Pagavam com cheque. Antes de cada jogo, antes do almoço, havia um envelope ao lado do prato de cada jogador, com o seu nome, que continha um cheque de cerca de dois mil dólares por uma vitória no jogo anterior. Uma vez o capitão João Pinto levantou-se e disse: 'A filha de um dos meus colegas de equipa vai ser operada ao coração e proponho que façamos um donativo, mas não há qualquer obrigação. Estou a entregar o meu cheque, cada um deve fazer o que pensa'. Ninguém hesitou um segundo, cada um entregou o seu envelope, e posso garantir que havia alguns jogadores da equipa para os quais essa quantia era significativa. Fomos ao clube, um rapaz cuja filha estava doente entrou no balneário e estava muito emocionado. 'Meus senhores, mas eu tenho o dinheiro', disse. 'A tua filha também faz parte desta equipa', ouviu do capitão. A situação no balneário comoveu-me e tocou-me mais do que o que tinha acontecido antes, ao almoço. Algum tempo depois, quando a criança regressou da cirurgia em França, o pai entrou no balneário e disse: 'A operação custou menos, não gastei a totalidade do valor que recebi de vocês, mas sabia que vocês não aceitavam devoluções. Por isso, comprei a máquina que deu vida à minha filha e vou doá-la à clínica do Porto para que as pessoas daqui deixem de ter de ir a França ou a outro sítio qualquer para fazer a operação ao coração'. Fiquei chocado, mas foi aí que aprendi tudo isto: a responsabilidade de todos, a união, o sacrifício. Pode parecer patético, mas o lema dos Mosqueteiros 'um por todos, todos por um', aplica-se de facto."
Mielcarski falou da utilização nos dragões, dos títulos e das lesões: "Infelizmente, rompi rapidamente o ligamento cruzado. O joelho não aguentou o esforço. No início dos anos 90, os campos na Polónia eram péssimos, tinham mais barro ou lama do que relva. E eu era sempre alto, forte e pesado. Por vezes, tinha problemas nos tendões ou nos músculos e, nessa altura, na Polónia, as lesões eram mais frequentemente saradas do que curadas, o futebolista recebia uma ligadura e voltava ao campo. Em Portugal, acontecia o pior, e aí não bastava jogar não só a 70 por cento das capacidades, mas até a 90. Se nos dói a perna, saltamos alto, se o joelho incha, não aceleramos. Depois do meu primeiro ano, chegou ao clube o brasileiro Jardel, que marcou um golo como se fosse um calcanhar. Mas no início os colegas riram-se um pouco dele, porque tecnicamente era mais verde do que eu, que coxeava. Mas depois disso, nunca mais vi um jogador tão cabeceador, marcava sempre mais de 30 golos. E eu, no meu terceiro ano no FC Porto, duas sessões de treino por dia eram demais para mim, o meu joelho estava a inchar. Acontece que a minha primeira operação foi mal feita, depois foi corrigida duas vezes, incluindo numa clínica belga com o Dr. Martens. No entanto, não recuperei a forma física total, tive atrofia muscular, mas sempre tive a ambição de voltar e ajudar a equipa. O que vou dizer agora vai soar a sinistro e que sirva de aviso a todos os jovens jogadores: depois da rutura dos ligamentos cruzados e da minha primeira operação ao joelho, voltei aos relvados passados apenas dois meses e três semanas. Hoje sei que não devia ter feito isso, que o tiro saiu pela culatra mais tarde. Em janeiro de 1998, disputámos um jogo dos oitavos de final da Taça de Portugal contra a equipa da Maia, marquei um golo e depois um dos rivais caiu-me nas costas e partiu-me a clavícula. Fui operado e cinco semanas depois entrei em campo na meia-final da competição contra o Leiria. No prolongamento, marquei o golo que fez o 3-2 e passámos à final, que vencemos. Joguei nesse dia com ligaduras, com dores, mas como era necessário, joguei. O meu carácter e a minha determinação foram apreciados. Ao fim de quatro anos, podia ter prolongado o meu contrato por duas épocas, o contrato estava em cima da mesa, mas preferi ir para Salamanca para jogar mais."
O atacante comentou também como foi trabalhar com Bobby Robson: "Robson é um homem que até hoje me dá vontade de chorar ao lembrar-me dele. Ele era como um pai para muitos desportistas. É-me difícil pôr tudo em palavras. Uma vez convidou-me para jantar. Tive um momento difícil. Ele mostrou o bar cheio e disse: 'O que é que quer beber?'. 'Nada, obrigado'. 'Mas, se estivesses aqui sozinho, o que escolherias?'. Apontei para o whisky, embora tenha mentido um pouco, pois na altura nem sequer conhecia o sabor da bebida. Em resposta, ouvi: 'Experimenta, porque amanhã podes morrer e não saberás a que sabia o whisky. A vida passa depressa, não sabemos o que nos espera na próxima curva'. A mensagem era mais universal e não especificamente sobre o álcool. Ele disse-me isto porque já sabia que tinha melanoma e não tinha a certeza de como tudo iria continuar. Quando saiu do campo connosco, deixou de ser um treinador e passou a ser um amigo, um pai e um mentor. A sua mulher ensinava inglês gratuitamente nas escolas do Porto, percorria as fábricas e recolhia produtos defeituosos para depois os doar a crianças carenciadas. Robson ensinou-nos a humildade, a diligência, a abertura e a vontade de ajudar os outros. Depois da já referida situação da gota de água da cirurgia ao coração, o treinador chamou o então jovem Ricardo Carvalho e disse-lhe para levar uma caixa de champanhe para o balneário. 'Hoje não há treino no relvado, é no balneário', anunciou o treinador. Aquela hora com um copo de champanhe no balneário valeu mais do que duas no relvado com as bolas. Sentimos que só ganharíamos se fôssemos coesos e um se sacrificasse pelo outro. Isso uniu-nos."