Em 2018, saídas de Marcano e Reyes a custo zero do FC Porto mudaram paradigma, que ganha corpo este ano. Brahimi e Herrera são os exemplos maiores de que estamos perante uma nova era. Há mais dinheiro: clubes do meio da tabela da Premier League batem grandes com facilidade e dão o poder aos jogadores
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O poder mudou de mãos. Se até aqui os clubes portugueses contornavam a Lei Bosman (1995), que libertou os jogadores em final de contrato de indemnizar um clube, aumentando exorbitantemente cláusulas e recorrendo a técnicas de intimidação/pressão, o paradigma mudou. Há mais dinheiro em quase todos os emblemas da Premier League, da Serie A e de La Liga. E mesmo equipas de segunda linha garantem paraísos financeiros inacessíveis aos três grandes de Portugal, como na Turquia (apesar da crise cambial, que aumenta exponencialmente os custos dos clubes turcos).
Há uma multiplicação de ofertas para atletas trabalhadas pelos seus agentes que deixam os dirigentes lusos de mãos atadas. Há um ano, as saídas a custo zero de Marcano (Roma) e Reyes (Fenerbahçe) do FC Porto, sem serem ostracizados e continuando a jogar até ao fim, anunciaram o que aí vinha: uma nova era.
O que era apenas pró-forma (a Lei Bosman permite ao atleta comprometer-se com um novo clube nos últimos seis meses do vínculo, portanto a partir de 1 de janeiro) agora é efetivo. "Os jogadores é que podem decidir se querem continuar ou não. Têm as propostas que nós podemos dar. Têm o direito de optar por outras, como outros fizeram no ano passado", pontuava Pinto da Costa no dia 1.
"A gestão mudou. Um jogador que não renovasse não tinha clube e não jogava. Agora tem. O poder mudou de mãos. Hoje é mais fácil a um agente colocar um jogador. Só em Inglaterra, há 15 equipas que podem levar os melhores jogadores da I Liga em final de contrato. O West Ham tem capacidade financeira para oferecer um contrato ao Brahimi superior ao do FC Porto. E ainda lhe paga um prémio de assinatura de 30% da cláusula de rescisão [18 dos 60 milhões de euros]", conta a O JOGO uma fonte com acesso a informação privilegiada do futebol profissional.
Entretanto, dos 12 jogadores dos três grandes (dos cem na totalidade) que ficavam livres para novo compromisso este mês, Salvio renovou até 2022 e custará por época ao Benfica cerca de cinco milhões de euros (2,35 M€ limpos, mais 2,65 de IRS e segurança social), um valor muito superior ao que Salin aceitou por mais um ano no Sporting. Dos outros dez, há casos especiais como Casillas e Maxi (opção por mais um ano do clube em junho), mas Brahimi e Herrera estão a preparar-se para repetir o cenário do mercado de verão no Dragão há seis meses, quando o capitão Marcano e o mexicano Reyes saíram sem contrapartidas financeiras.
"A concorrência europeia tem condições orçamentais muito superiores que nos impedem de manter os jogadores. Inglaterra, Itália fortíssima com receitas dos novos direitos televisivos [desde 2018], Espanha, Alemanha e França. E a Turquia paga muito bem", contextualiza o CEO do Famalicão e perito em gestão desportiva Miguel Ribeiro. "A receita é simples: comprar desconhecidos, fazê-los e vendê-los."
O empresário Artur Fernandes mostra-se satisfeito: "O poder sempre foi dos jogadores, eles é que não sabiam." E explica que este novo fenómeno "tem a ver com duas coisas". "Há cada vez mais poder de compra de clubes no mundo. O mais baixo orçamento da Premier League é igual ao mais alto da Liga [FC Porto e Benfica, a rondar os 170 milhões de euros].
E os dirigentes podem não gastar na transferência para aumentar salários, o que é melhor para os jogadores." "No ano passado houve jogadores no FC Porto que tomaram a decisão de sair e o clube aceitou-a. Acabou aquele tipo de chantagem: "Se não renovas, não jogas mais"", prossegue. Conclusão: "Formação, promoção e venda. Somos exímios no scouting e rápidos a contratar. Portugal é uma ótima porta para a Europa."
Depoimento de Luís Leon (partner da Deloitte e especialista em finança desportiva):
Inflação das cláusulas tornou-se favorável aos jogadores
"O fenómeno dos jogadores renovarem cada vez menos os contratos explica-se por vários fatores. O Neymar fez disparar as cláusulas de rescisão. Lembro-me de que o Mourinho contratou o Lukaku e disse que lhe iam chamar louco, mas depois iam dizer que era um bom negócio, como disseram.
Houve uma inflação das cláusulas de rescisão. E a inflação das cláusulas tornou-se favorável aos jogadores. Para os jogadores, é mais valioso agora serem livres do que quando os valores de rescisão eram mais modestos. Um jogador com 40 milhões de cláusula vale muito dinheiro ao próprio e ao agente. É mais interessante para os clubes procurarem atletas em fim de contrato, podem pagar 30% da cláusula diretamente ao atleta - em vez dos 60 milhões ao clube, dão 20 ao atleta. No fundo, é como funciona o mercado de trabalho, em que não há cláusulas de rescisão.
Houve um efeito perverso com o aumento das receitas dos direitos televisivos na Premier League. São sete mil milhões injetados numa só liga e mais clubes ficam capazes de bater cláusulas que antes só uns poucos conseguiam. Em Portugal, o país do futebol divide-se em Porto e Benfica; depois Sporting; depois Braga; e só depois o resto. Há jogadores a ganhar 1500 euros brutos por mês, e são a maioria. A média é irrelevante, porque está inflacionada por três clubes, mais o Braga. Os atletas dos clubes abaixo vivem na expectativa de mudar de clube, para os grandes ou para uma liga francesa. Ou vão para a liga turca ganhar 20 vezes mais.
O futebol tem duas receitas essenciais: televisão e cláusulas de rescisão. As ligas mais mediáticas vivem destas duas receitas, as outras da formação.Portugal vive das cláusulas, televisão e Champions. E nesta, só FC Porto e Benfica têm participado."
DADOS
Portugal: 100
Dos 485 jogadores da I Liga terminam contrato em junho. Desde o início do mês podem comprometer-se com um novo clube para contrato a partir de 1 de julho de 2019
Espanha: 66
Jogadores em 473 cessam vínculos com os clubes em Espanha. É o número mais baixo das principais ligas europeias. Segue-se a Itália: 72 em 566 atletas.
Rússia: 157
415 jogadores terminam contrato com os clubes da liga russa, o número mais alto. A Turquia vem a seguir, com 140 dos 480 atletas a cessarem vínculo em junho.