Jesualdo Ferreira, um nome forte do futebol português e mundial, poderá estar muito perto de terminar a carreira. Ainda não decidiu, mas já sabe que não vai ser nada fácil viver.
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Aos 73 anos, o professor Jesualdo Ferreira está perante um drama pessoal: terminar ou não a carreira, uma carreira tão cheia de títulos e de vivências, em Portugal e no estrangeiro, que realmente se torna difícil olhar para o mundo sem ser treinador de futebol. De regresso a Portugal para umas férias, o professor conversou com O JOGO pertinho da praia de Carcavelos. A conversa perdeu-se em inconfidências e memórias, algumas fortes. O professor é danado para a conversa, às tantas já era ele quem interrogava o jornalista. Eis o resultado em quatro páginas de um momento bem passado.
Esta é a última entrevista que dá como treinador de futebol?
- Pode ser... não sei, neste momento não sei. Ser treinador de futebol é uma paixão que tem mais de 45 anos. Vai ter um dia de acabar. Não estou preparado para acabar a carreira, não vale a pena andar a enganar-me. Gosto muito de treinar, gosto muito de competição, dos jogadores, dos ambientes. Não me estou a ver fora de toda esta vida.
Foi uma surpresa ter terminado a ligação ao Al-Sadd?
-Não, não foi, estava tudo previsto. Foram quatro épocas no Catar, onde as coisas correram muito bem. Foi uma atividade de créditos ganhos - ganhámos a confiança, o respeito das pessoas e do poder político do Catar. E isso foi tão importante como os títulos que ganhámos. Terminei o contrato, o Xavi vai ser o novo treinador, já estava previsto. O xeque Jassin, dono do clube, falou comigo, foi uma estratégia que traçámos na época passada. Aceitei esse pedido. Ainda bem que assim foi. Tive a oportunidade de ganhar o campeonato, que já merecíamos há muito tempo. Quando terminei a minha ligação ao Al-Sadd, o xeque falou comigo, agradeceu-me o trabalho feito em prol do clube e do futebol do Catar.
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Continuar no Catar é uma possibilidade?
-Talvez. Há uma série de mudanças e de projetos de futuro que têm a ver com o Mundial do Catar e querem contar comigo. Se entretanto surgir a possibilidade de voltar ao treino terei de pensar duas vezes, não porque o treino me chateie, ou me enfade, mas terei de avaliar as minhas capacidades de continuar a ser forte no campo. Já tive algumas abordagens, está de pé a possibilidade de integrar algum projeto desses. Vou voltar ao Catar, isso é certo. Tenho outros projetos para além do futebol. Para já... férias. Se tiver dois meses de férias, é uma conquista muito grande.
Você não está mesmo preparado para abandonar o futebol...
-Não, não estou preparado para terminar a carreira. Estou naquela situação de não ter perspetiva, o que é muito desagradável. Fui sempre capaz de definir o que fazer no início de cada época. Neste momento, esse trabalho não existe, não há uma época para preparar. É muito estranho e vamos ver como é que vou lidar com essa situação. Se esta conversa fosse daqui a três meses, teria uma resposta...
O cavalo passou à porta e o professor montou
O início da época de 2006/07 é inesquecível para Jesualdo Ferreira. Estava há um mês no Boavista e Pinto da Costa ligou-lhe. O professor diz que foi um momento de sorte na sua vida
Entre 2006 e 2010, Jesualdo Ferreira foi o treinador do FC Porto. E de uma carreira tão rica, o professor elege a passagem pelos dragões como a história mais importante da sua vida profissional. "Tinha feito um bom trabalho no Braga, com a importância que toda a gente elogiou, juntamente com o presidente António Salvador, e terminei o contrato. Assinei pelo Boavista e, passado um mês, estava no FC Porto. Aconteceram uma série de circunstâncias que levaram a isso. Foram de todo inesperadas, mas representaram um momento de sorte na minha vida"... O professor conta como tudo aconteceu...
"O presidente Pinto da Costa ligou-me e perguntou-me se queria ir treinar o FC Porto, disse-lhe que estava no Boavista, com contrato assinado e não sabia muito bem como seria possível. E ele disse. "Olhe que o cavalo só passa à nossa porta uma vez". E eu disse, "ok, então eu vou já montá-lo". Diga-me só como é que faço isso para seguir o caminho correto. Foi difícil, foi complicado, mas foi uma história com um final feliz."
O FC Porto vivia as atribulações do Apito Dourado, não foi uma fase fácil, como conta Jesualdo Ferreira: "Foi tudo ganho com água do Luso. Fomos os melhores, não houve ajudas de ninguém. Foi o momento que tive para provar o meu valor, a minha capacidade como treinador. Foi o momento de ganhar o respeito das pessoas. O FC Porto deu-me a possibilidade de eu conseguir o que sempre quis. Provar que era um dos melhores, porque essa história de ser o melhor é complicada... Eu queria ser o melhor, queria ganhar mais do que títulos. Disse muitas vezes às minhas filhas que deixaria o futebol no momento em que obtivesse o reconhecimento das pessoas pelo meu valor... [risos] Por acaso não abandonei. Depois do FC Porto, já corri mundo. Já estive na Grécia, no Egito, já regressei a Portugal [n.d.r. Braga, 2015]"...
Apesar de ter deixado o FC Porto há nove anos, o nome de Jesualdo Ferreira continua a ser muito querido entre os adeptos, que recordam naturalmente três títulos consecutivos. O professor comenta... "Olhe, quando eu fui para o FC Porto venderam a ideia de que os adeptos não gostavam de mim porque eu era do Benfica. Durante o tempo que estive no Porto, nunca notei que isso fosse tão verdade assim. É verdade que não andava nas ruas a ouvir conversas ou a saber o que diziam de mim, mas tinha a perceção de que as pessoas me tratavam muito bem. Senti isso até ao fim da minha ligação. Os resultados obviamente que ajudam, e eu consegui bons resultados no clube, mas nunca percebi nada de hostil em relação à minha pessoa. Foram sempre muito simpáticos comigo."
No momento, Jesualdo Ferreira continua a olhar para o FC Porto com carinho... "Quero muito o bem do FC Porto, para mim foi uma honra e um privilégio enorme ter treinado o clube. O FC Porto deu-me momentos inesquecíveis, como sei que dei momentos de alegria aos adeptos, ou pelo menos dei o meu contributo para essa alegria, que é merecida, porque são incansáveis no apoio. Sim, foi sem dúvida a melhor história da minha carreira profissional."
"O túnel levou-me o tetra"
A história da última época no FC Porto ainda lhe mexe com os nervos, mas a saída foi pacífica
A sua saída do FC Porto foi na altura algo enigmática. Depois de vencer três campeonatos....
- Quatro anos é um desgaste muito grande. Nesse ano em que saí, o FC Porto ganhou a Supertaça e a Taça de Portugal, mas perdeu o campeonato. Quando eu cheguei ao FC Porto, o presidente disse-me: há dois objetivos a conseguir: um é ser campeão, o outro é passar a fase de grupos da Champions. Nos quatro anos em que estive no FC Porto só falhei um objetivo uma vez. E falhei, muito devido àquela cena do túnel, porque durante três anos a equipa foi fazendo a sua vida, que era ganhar e fazer bons negócios. Alinhei a 120 por cento.
Foi então o desgaste?
-Sim, no último ano havia um desgaste grande. A cena do túnel da Luz provocou mossa na equipa, fragilizou-nos. A forma como foi julgado o processo do Hulk e do Sapunaru... e ainda quiseram envolver o Helton. Não é fácil, mesmo para um treinador experimentado, lidar com isso...
A cena do túnel roubou-lhe um título?
-Atenção que nesse ano a equipa do Benfica era forte e foi campeã com o Jorge Jesus, mas eu costumo dizer que o túnel tirou-me o tetra a mim e o penta ao FC Porto. Sem isso, as probabilidades de ganharmos o título eram iguais como foram nos anos anteriores. Jogávamos muito bem, um futebol de ataque, como eu gosto que as minhas equipas joguem. Até podia perder o título, mas perdê-lo naquelas condições não foi a coisa mais bonita que aconteceu no futebol português.
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