MELHOR ARGUMENTO ORIGINAL - Um jogo sem ídolos e com menos desejo de ganhar do que de mudar o mundo. O cronista Joel Neto fala-nos um pouco mais desta modalidade... ou filosofia.
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Em 2020 lá estarão eles de novo, agora em Londres. O recinto anfitrião ainda não foi anunciado e o número de equipas participantes também não. Mas há as experiências bem-sucedidas de Silkeborg 2014 e Kassel 2017. Um evento chamado "Pensando o Futebol", organizado em Espanha pela Fundação Athletic de Bilbao entre 2011 e 2012, chegou a reunir 37 equipas.
O próprio Reino Unido já correspondeu com devoção ao seu apelo: desde logo em 2010, na reta final da preparação para as eleições legislativas, em que equipas representantes dos Partidos Trabalhista, Conservador e Liberal-Democrata se reuniram no Haggerston Park para um torneio organizado em conjunto entre a Whitechapel Gallery e o Phylosophy FC, e de que - sintomaticamente - os trabalhistas saíram vencedores.
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O futebol de três lados prepara-se, portanto, para o seu terceiro campeonato do mundo. Dava um filme, embora talvez não necessariamente um filme desportivo. Talvez devesse antes tratar-se de uma obra de âmbito político, tendo em conta as motivações que regulam o jogo desde que, em 1963, a Secção Franco-Belga da Internacional Situacionista, liderada por Guy Debord e Raoul Vaneigen, lançou as bases para o revivalismo do movimento ocorrido já no século XXI. Ou talvez de vocação filosófica e artística, de acordo com a matriz original que lhe foi impressa em 1957 pelo pintor e filósofo dinamarquês Asger Jorn, seu criador. Mas, em todo o caso, porá doze jogadores em jogo, pontapeando a bola e tentando introduzi-la na baliza adversária. Simplesmente, haverá duas balizas adversárias, porque estarão em campo três equipas - e o campo, em vez de retangular, será hexagonal.
A estrambólica variante de futebol, que recebeu o nome internacional de 3-Sided Football (ou 3SF), nasceu em 1962, quando Asger Jorn deu à estampa o seu livro mais importante: "Naturens Orden" (ou A Ordem Natural). Nele se sistematizavam os fundamentos do situacionismo, que assim se autonomizava do letrismo, estilo artístico fundado em 1942, na Roménia, quando o pintor Isidore Isou decidiu combinar soluções do dadaísmo e do surrealismo com as doutrinas marxistas que, em sua opinião, tinham resistido à evolução do capitalismo. Pelo meio, era proposta uma alternativa à dialética de Karl Marx: uma trialética, ou lógica de três valores, na qual, além da Verdade e da Mentira, se passava a considerar também um terceiro (e indeterminado) valor. E, entre os exercícios práticos, estava um extraordinário jogo de futebol, de intenção sobretudo filosófica, disputado por três formações em simultâneo e no qual, em vez de ganhar a que marcasse mais, ganharia aquela que sofresse menos golos.
Os princípios da trialética foram aplicados igualmente ao xadrez, com a criação de um tabuleiro familiar chamado xadrez de três lados, e que normalmente é apresentado em hexágono também. O frenesi estratégico é semelhante: quem se balanceia no ataque a um adversário corre o risco de ser desfeiteado na defesa pelo outro.
A modalidade terá sido praticada poucas vezes na altura, de tal modo que escasseiam as referências a qualquer iniciativa concertada para pô-la em prática. Com a chegada dos anos 60, o letrismo reforçou a sua vocação política - a mesma que em 1952, em Paris, levara a uma manifestação contra uma conferência de Imprensa de Charlie Chaplin, segundo a exegese da Teoria da Alienação que propunha o combate a todos os ídolos como sinais de opressão - e o situacionismo foi com ele. Ambos os movimentos tiveram importância na preparação do Maio de 68, que lançou as bases do intelectual europeu contemporâneo. Entretanto, ambos se foram remetendo ao silêncio. O situacionismo foi, inclusive, declarado concluído em 1972, após o filme-manifesto "A Sociedade do Espetáculo", com guião de Guy Debord.
Mas o ressurgimento das contraculturas radicais de esquerda, especialmente ruidosas com a disseminação da internet, a ideia de combate ao terror como instrumento de globalização e o desemprego que se instalou entre a juventude ocidental, levaram uma série de jovens europeus a recuperar essas ideias. Entre elas estava (e está) o futebol de três lados, descrito como "subversivo", "anarquista" e "de resistência". Os primeiros sinais de revitalização ocorreram em 1993, na Associação Londrina de Psicogeografia, como parte da Escola de Verão Anarquista de Glasgow Green. Entretanto, a autointitulada Associação de Astrónomos Astronautas, com representantes em Inglaterra, França, Itália e Áustria, tentou jogá-lo nas suas duas primeiras Conferências Intergalácticas (sic), em Viena (1997) e em Bolonha (1999). Desde então, o interesse generalizou-se.
No campeonato do mundo de Silkeborg"14, disputado por equipas de seis países, saiu vencedor o Silkeborg KFUM. Em Kassel"17, com representantes de quatro países, os New Cross Internationals foram declarados vencedores segundo o primeiro critério de desempate, que prevê que, em caso de igualdade de golos sofridos, seja coroada a equipa com mais marcados. Como os Polish Husaria desconheciam esse critério, porém, os campeões convidaram-nos a partilhar o título. De resto, já há uma liga nacional (a Deptford 3SF League, no sudeste londrino), jogos de exibição em paradeiros cada vez mais distantes e até uma variante especial da modalidade (o tribal 3SF). As equipas têm tido diferentes dimensões, mas começa a convencionar-se que devem ser compostas por quatro elementos.
Talvez não cheguemos a ver uma prova transmitida pela televisão. Mas isso não nos impede de ver provado que o futebol também pode ser um instrumento filosófico.