O futebol feminino está em franca expansão, à boleia de uma aposta séria da FPF, do maior interesse mediático e de uma sociedade que evoluiu e começa a deixar para trás os preconceitos. O caminho ainda é longo, mas o que há uns anos parecia impossível, o profissionalismo, já é uma realidade, só que restrita a uma fatia curta e inalcançável para os clubes que já estão há muitos anos na modalidade.
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O futebol feminino atravessa uma revolução e, se o cenário é incomparável com o que se vivia há, por exemplo, 15 ou 20 anos, ainda há um longo caminho a percorrer. Basta lembrar que ser profissional na área em Portugal só é uma realidade há três anos e que a primeira participação da Seleção A numa fase final de uma grande competição remonta a 2017.
Braga e Sporting impulsionaram a primeira divisão e atraíram holofotes, mas criou-se um fosso que não se sabe como atenuar. Já se pode viver do futebol, mas a maioria ainda nem sequer é paga.
A Federação Portuguesa de Futebol tem apostado cada vez mais no futebol feminino e, esta época, reservou 4,6 milhões de euros para esse universo, que se divide em cinco seleções e 12 competições no futebol de 11 e quatro seleções e seis provas no futsal, das seniores à formação.
Há cada vez mais mulheres federadas - 8271 em 2018 em comparação com as 5911 de há dez anos - e o maior interesse dos média é acompanhado por uma sociedade que também já enterrou diversas teorias retrógradas. À primeira vista, tudo parece bem encaminhado, mas um olhar para a primeira divisão de futebol mostra uma profunda... desigualdade, ironicamente o que tanto se quer combater.
Fosso entre dois mundos
O plano da FPF passou pelo convite aos clubes da I Liga para entrarem na prova homóloga feminina, na época 2016/17. Sporting, Braga, Belenenses e Estoril aceitaram, mas só os dois primeiros cimentaram a posição à custa de recursos económicos, humanos e logísticos que estão a anos-luz do padrão dos outros clubes, que agora têm na simples disputa de títulos uma miragem. Na próxima época, tudo indica, junta-se o Benfica, promovido da segunda liga, e afia-se uma faca de dois gumes.
"A Andreia Norton e a Tatiana Pinto foram jogar para o estrangeiro. Recebemos zero" - Paula Pinho, (treinadora do Albergaria)
Segundo um estudo do Sindicato de Jogadores, na época passada - dados disponíveis ao lado - 66,7% das jogadoras não são remuneradas e, entre as que são, quase metade não aufere mais do que 100 euros, enquanto apenas 5,1% recebem dez vezes mais (1000 euros). "A entrada de Braga e Sporting tem o seu lado positivo. É muito bom que essas jogadoras possam ser profissionais e isso também vai trazer frutos para a Seleção, mas atenção às outras...", afirmou a O JOGO a treinadora Paula Pinho, 47 anos, com uma vida dedicada à causa, em especial ao Clube de Albergaria, cujo orçamento anda entre os 50 e os 60 mil euros. O Sporting, por exemplo, investe um milhão de euros.
"A média dos outros dez clubes é o amadorismo. Três treinos por semana em horário pós-laboral. Por muito que nos queiramos aproximar do nível profissional, não dá. Tenho uma jogadora que se levanta às cinco da manhã todos os dias para trabalhar num supermercado. Como é que lhe posso pedir que treine mais vezes e durma três ou quatro horas?", explica Paula Pinho, cujo trabalho desenvolvido no futebol feminino já foi distinguido pela UEFA.
Já Madalena Gala, jovem treinadora (26 anos) do Clube Futebol Benfica, mais conhecido por Fofó, tem uma visão mais positiva. "É a partir dos clubes grandes que tudo cresce, dão nome, estatuto e visibilidade. A entrada deles é ótima. A modalidade já não é um bebé a gatinhar, mas uma criança a correr", afirmou, com a ressalva de que "não é fácil nem pedagógico sair das aulas e do trabalho para ir treinar com tanta paixão e no fim de semana levar 20-0". "Cabe ao treinador gerir as emoções e incentivar à aprendizagem e ao prazer de jogar contra profissionais. Mas se esses clubes entram, que seja a sério", completou, numa linha diferente da de Paula Pinho: "Para as jogadoras do Sporting, deve ser mais competitivo um treino do que um jogo. Nós já temos a permanência mais ou menos garantida e, como não há objetivos intermédios, como vou motivar jogadoras para treinarem às 21 horas?"
Por não ser um meio rentável, é difícil encontrar uma forma de diminuir o fosso. Paula vê "poucos clubes, mesmo na I Liga masculina, com a capacidade de criar uma estrutura profissional" e lembra que Andreia Norton e Tatiana Pinto foram transferidas do Albergaria para o estrangeiro a troco de nada - "não há base legal que regularize isto, aponta - mas insiste na aposta na formação: "Há poucas jogadoras para alimentar três ou quatro grandes. Não é por acaso que estão a contratar no estrangeiro." Aproximam-se jornadas técnicas nas quais a FPF vai apresentar algumas propostas e Paula Pinho admite "expectativa".
"É com os grandes que tudo cresce. As goleadas não são fáceis, mas cabe ao treinador gerir as emoções" - Madalena Gala (treinadora do Fofó)
Futsal começa a crescer
Dos relvados para a quadra, a evolução não está no mesmo patamar, mas também é bem menos recente. Aliás, o Europeu de Gondomar que, este mês, terminou com Portugal em segundo lugar foi só o primeiro da história. A Seleção estreou-se em 1997, foi desativada em 2004 e regressou em 2010 na antecâmara do grande impulso da FPF, que criou um campeonato nacional em 2013/14 e ainda potenciou quatro seleções jovens.
Gondomar foi um bom prenúncio, como o ouro nos Jogos Olímpicos da Juventude, mas, apesar de Benfica e Sporting terem equipas, viver do futsal ainda é uma realidade distante para as mulheres lusas.
Os insultos retrógrados deram lugar ao apoio e respeito
Não é que o problema esteja ultrapassado - 36,4% das jogadoras já sentiram discriminação de género - mas houve evolução. Cândido Costa explica como mudou a visão que tinha sobre futebol feminino.
"O desporto é uma alavanca para defender a equidade" - Ana Bispo Ramires, Psicóloga de Desporto.
O futebol feminino está a impor-se como fenómeno desportivo por direito próprio, progresso que tem tido um efeito de desconstrução de estereótipos, que proporcionavam "comentários machistas e retrógrados" de plateias atualmente recetivas e apoiantes. "As pessoas vão ver os jogos e gostam das jogadoras, isso dá-me um certo gozo, porque toda uma geração passada vê recompensado o esforço", destaca Carla Couto, embaixadora para a modalidade e representante sindical, que jogou debaixo de uma mentalidade "que atribuía pouca competência" às mulheres para jogarem, porque "pertenciam à cozinha".
Além disso, tinham de enfrentar "um rótulo" sobre a orientação sexual, quando "essa situação existe em todo o lado, até nos homens, só que, provavelmente, é mais abafado", atira Edite Fernandes, que aos 39 anos atua no Fofó, reconhecendo "que a própria mulher também evoluiu, as jogadoras também sentiram a necessidade de mudar a sua imagem".
"O novo impulso que agora se observa no futebol feminino, resulta iminentemente do forte apoio da FPF e dos clubes, dos treinadores que agarraram este desafio de levar o futebol feminino "to the next level"", comentou a O JOGO a psicóloga do desporto Ana Bispo Ramires. A equidade entre géneros representa uma luta com tentáculos em vários sectores da sociedade, onde as diferenças se acentuam em função de se ser homem ou mulher. Edite entende que as mulheres "ainda não estão no patamar do futebol masculino" e que nas "questões monetárias nunca lá chegarão".
"Tinha uma visão preconcebida e fui surpreendido: elas vão para lá dos 100%" - Cândido Costa, Ex-treinador de Ovarense e Cesarense.
Cândido Costa, que treinou Ovarense e Cesarense, não esconde que formulou "uma ideia preconcebida" sobre o futebol feminino. "Pensava que os treinos seriam aborrecidos e elas incapazes de discutir um lance com a bravura de um homem. E fui surpreendido, porque as vi irem para lá dos 100%, com a agravante de não serem remuneradas. Resgataram em mim o futebol genuíno que ficara robotizado, lembraram-me a paixão pelo jogo", reconhece.
CURIOSIDADES
Portuguesas têm lugar na elite
Ana Catarina Pereira foi considerada a melhor guarda-redes de futsal do mundo, Fifó a terceira melhor futsalista e Cláudia Neto está entre as 100 melhores futebolistas para o diário inglês The Guardian.
"Vocês não cabem todos no balneário..."
Paulo Pinho recordou a primeira visita do Braga ao Albergaria: "O staff era tão extenso que não havia lugar para todos no balneário, nem espaço para todo o material e equipamento."
Treinadoras ainda se contam pelos dedos
Só há três treinadoras na liga feminina. Os cursos obrigam a um investimento considerável - de 800 euros no Nível I a 5000 no Nível III - que dificilmente tem retorno. Por outro lado, Paula Pinho e Madalena admitem que ainda é difícil ver mulheres em papéis ativos e de liderança.
Steinhaus portuguesa ainda vem longe
A Bundesliga já conta com uma árbitra: Bibiana Steinhaus. Em Portugal existem cerca de 200 árbitras, mas só podem atuar no Campeonato de Portugal em situações extraordinárias. Sandra Bastos é a mais cotada e será a primeira portuguesa a arbitrar num Mundial, já em junho, em França.
Quase 50 mil a ver um jogo em Espanha
Em janeiro, a receção do Bilbau ao Atlético de Madrid levou 48 121 pessoas ao San Mamés. O recorde mundial é de 51211 pessoas, no México, no Monterrey-Tigres.
A melhor do mundo não vai ao Mundial
Ada Hegerberg, a primeira mulher a receber a Bola d"Ouro não vai representar a Noruega no Mundial, em protestos com as condições das futebolistas no seu país.
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