FPF e Liga fazem mira ao TAD e às providências cautelares: já há propostas no Governo
TEMA - O modelo adotado, em 2013, para a organização e funcionamento do Tribunal Arbitral do Desporto nunca foi consensual e os últimos meses precipitaram a ação da FPF e da Liga no sentido de convencer o Governo a legislar de forma a garantir rapidez na justiça que se pretende ao alcance de todos
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Começou com a suspensão do efeito do cartão amarelo que deveria ter afastado João Palhinha do jogo do Sporting com o Benfica, na primeira volta e depois estendeu-se a um outro âmbito, o do adiamento dos castigos aplicados pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) nesta fase final da época, em que as sanções tendem a ser acentuadas pela reincidência.
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O recurso à providência cautelar tornou-se um instrumento de grande utilidade para o caldo de tensão em que borbulha o topo da Liga NOS. A legitimidade do procedimento é inatacável à luz da legislação e das normas do Direito. Prevista na lei do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), nem sequer é novidade para os departamentos jurídicos dos vários clubes. É o procedimento que tem permitido adiar penas como a realização de jogos à porta fechada, por exemplo. As reservas surgem quando entra em matéria estritamente desportiva, cuja apreciação está vedada ao TAD. Juristas ouvidos por O JOGO aconselham a definição dos limites ao nível legislativo, embora sem unanimidade. A FPF defende a reforma do TAD e, há um mês, enviou propostas ao Governo e a outras entidades desportivas. A Liga está a trabalhar no mesmo sentido. Todos alimentam a expectativa de nova, célere e clarificadora legislação.
FPF e Liga estão a trabalhar para que as providências cautelares deixem de ser um instrumento para adiar castigos de jogadores e treinadores
Nas mãos do secretário de Estado com a tutela do Desporto há, pelo menos, dois documentos: um da autoria de José Manuel Meirim, ex-presidente do CD e conselheiro federativo, e outro que ele próprio coordenou e integra contributos de terceiros. Este último admite a possibilidade de passar a haver um só árbitro, em vez dos três atuais, e mecanismos que permitam resolver de forma rápida as questões disciplinares, com uma alteração radical no capítulo das providências cautelares: a possibilidade de serem decididas por um único árbitro, sorteado, e que depois não poderia integrar colégio que viesse a apreciar o processo. Iniciar a nova temporada com uma clarificação total é a expectativa dos responsáveis do futebol. A bola está, por agora, no campo do Governo e da Assembleia da República, a quem compete alterar a legislação.
Para o advogado João Nogueira da Rocha, árbitro do TAS (Tribunal Arbitral du Sport, sediado em Lausanne, na Suíça), o procedimento adotado pelos clubes "faz todo o sentido, para que não haja injustiça". "Verificadas que estejam as três condições" para uma providência cautelar ser aceite" é "perfeitamente legítimo", nota: "Se essa decisão pode ser alterada, faz todo o sentido suspender-se e a pessoa cumprirá sempre a pena". As condições - "A probabilidade séria da existência do direito invocado, o receio fundado de que antes da ação ser proposta exista uma lesão grave e não ser o prejuízo resultante de providência superior ao dano que se pretende evitar", refere - têm sido repetidas aos adeptos da Liga NOS, nestas últimas semanas, a propósito dos castigos adiados dos treinadores do Sporting e do FC Porto. Rúben Amorim e Sérgio Conceição viram suspensões que lhes foram aplicadas pelo Conselho de Disciplina e os impediriam que estar no banco em jogos decisivos da reta final do campeonato adiadas por providências cautelares no TAD ou, quando este não pôde responder em tempo útil, no Tribunal Central Administrativo Sul, instância que liberou João Palhinha para o clássico lisboeta, na primeira volta, e, recentemente, também o treinador do líder da tabela para estar no banco frente ao Rio Ave. No caso do técnico portista, o TAD foi unânime no entendimento de que se justificava suspender o castigo.
Em contextos distintos, João Palhinha, Rúben Amorim e Sérgio Conceição viram os efeitos de decisões disciplinares suspensos por providências cautelares, em momentos-chave do campeonato
Como todos os advogados contactados, João Martins, que integrou a estrutura do Vitória de Guimarães e, posteriormente, da Liga, também ressalva a inatacável legitimidade do recurso à providência cautelar. "Veio com a lei do TAD", embora essa tenha limites. "O legislador Estado prevê essa possibilidade de quem não se conformar com uma decisão poder reagir, a não ser que estivéssemos perante uma situação estritamente desportiva", sublinha. Esse é o ponto-chave da discussão e surgiu com o caso Palhinha. "O que está na lei: uma questão estritamente desportiva o TAD não pode apreciá-la, há uma norma expressa que o diz", refere-se "aquilo que acontece no jogo", como os cartões amarelos ou vermelhos exibidos pelo árbitro.
"Não vejo um treinador que seja expulso na Liga Europa ou na Champions a poder recorrer para o TAS para suspender a decisão"
Sampaio Nora também aponta esta reserva. "O caso dos jogadores encerra um precedente perigoso. Estamos a discutir e a suspender os efeitos decorrentes de um cartão amarelo mostrado por um árbitro a um jogador; estamos, no fundo, a substituir-nos ou, pelo menos, a suspender um julgamento feito por um árbitro no campo" e essa matéria é sensível: "O problema vai-se pôr sempre a um nível superior, nomeadamente, dos regulamentos da FIFA no que toca à sindicância das decisões do árbitro, que são insindicáveis". Para João Martins, "quem está à frente das instituições" e "tem o dever de pensar estas questões" e, eventualmente, de "pedir reuniões ao Governo para legislar sobre a organização e funcionamento do TAD" deve avançar para a clarificação desta matéria e fazer prevalecer o "interesse coletivo, não o individual, em função do que interessa neste momento histórico". "Não vejo um treinador que seja expulso na Liga Europa ou na Champions a poder recorrer para o TAS para suspender a decisão", exemplifica. "Há outros interesses em jogo", como a "estabilidade das competições e a verdade desportiva", outros valores a "proteger": "Há um princípio fundamental para perceber todo o Direito: o da concordância prática entre os valores. Ou seja, quando os valores estão dentro do mesmo patamar, deve-se tentar retrair cada um em função do equilíbrio, aquela concordância entre os valores, sendo certo que, nalguns momentos, uns ficam mais retraídos do que outros. Aqui, a garantia individual de um agente desportivo que, dentro do jogo, bem ou mal, foi castigado, este direito de ele poder defender-se e suspender os efeitos daquela decisão sobrepõe-se ou não ao valor da estabilidade e da verdade desportiva? No fundo, é isto que está aqui em causa. É mesmo urgente fazer esta discussão, para isto não se tornar um caos".
Um tribunal controverso
Criado em 2013, o Tribunal Arbitral do Desporto não é consensual entre os agentes do universo em questão, designadamente, ao nível do futebol profissional. Em artigo de opinião publicado n"O JOGO, a 23 de setembro de 2018, Sónia Carneiro, diretora executiva da Liga, chamava a atenção para "a (in)justiça do TAD". "O desporto não teve direito a uma justiça garantida pela isenção e imparcialidade de um juiz de carreira", criticou então: "No modelo arbitral, cada uma das partes escolhe um árbitro da sua preferência, clientelizando os "juízes", em violento choque com a independência que se exige a um tribunal". A advogada, braço direito de Pedro Proença, apontava ainda a questão da "mercantilização da Justiça", ilustrada "facilmente com um exemplo de custas no TAD, em que um processo de 1000€ gera uma "conta" de, pelo menos, 4150€!". Ou seja, ao alcance apenas dos clubes mais ricos.
Palhinha gerou batalha jurídica
Apesar de ter sido o primeiro a suspender uma decisão do CD através de providência cautelar aceite pelo Tribunal Central Administrativo (TCA) Sul, a discussão do caso de João Palhinha não gira em torno deste procedimento, mas do âmbito escolhido pela SAD do Sporting para discutir o castigo de um jogo de suspensão que resultou da acumulação de cinco cartões amarelos. O quinto, que o afastaria do encontro com o Benfica, foi erradamente exibido no jogo com o Boavista. O Sporting recorreu do castigo para o pleno do CD, mas, embora o árbitro Fábio Veríssimo tenha admitido o erro, a sanção manteve-se, com base no entendimento de que o julgamento em campo deve prevalecer, pois o erro faz parte do jogo. A SAD decidiu-se pelo recurso para o TAD e, na impossibilidade de constituição do júri em tempo útil, recorreu ao TCA Sul, que suspendeu o efeito de uma decisão que, por ser de natureza estritamente desportiva, deverá ser remetida à competência no Conselho de Justiça federativo - instância cujo recurso não admite a providência cautelar que liberou Palhinha.