A garagem mais bem vestida: camisolas que não se esgotam, numa história de afetos e simbolismos
Luís Paiva deixou de jogar e o bichinho da bola manteve-o em campo, colecionando camisolas. Fez nascer o culto numa arrecadação, que estava destinada a petiscos. Otimizou a área, fabricando fácil apreciação. Das camisolas autografadas por Messi e CR7, à mais especial, uma do União de Leiria
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Peso da memória e a nostalgia perpetuada pelas paredes, com arrojo e criatividade de transformar uma arrecadação de uma garagem num museu, onde impera o cunho pessoal, a paixão e a saudade dos craques que deram a sua graça ao futebol português, ou até por muitos que ainda estão no terreno, não havendo qualquer ponto de honra em emoldurar apenas o passado, o presente está bem representado, sendo a coleção de Luís Paiva uma prova ainda maior dos afetos deslindados no mundo do futebol.
Irresistíveis pedaços de história, representem um jogo único, uma época dourada, ou um simples gesto de entrega de uma peça carregada de identidade. No MLP8, em Leiria, nem é preciso vasculhar, o olhar faz o trabalho, já que a exposição prima pela organização, por uma estética desenhada pelo mentor, sendo fácil descobrir onde moram Neymar, Salah, Raul e outras figuras internacionais, ou Lampard numa vitrina especial, por ser o homem de culto da casa, referência numa montra alusiva ao 8, o número mágico de Luís Paiva, que detinha enquanto jogou na formação da União de Leiria ou em vários clubes da distrital. Ainda há tempo para uma homenagem a uma equipa da União de Leiria, que protagonizou campanha histórica na Intertoto, havendo camisolas distribuídas por todo o espaço que representam, sobretudo, ofertas de vários jogadores da nossa praça. Recordam-se tempos de Moutinho no Sporting, mas é o mapa nacional de vários elencos da I Divisão que pesa, pelo qual se conhece a história a cada visita. Da perdição ao deslumbre, também se espremem mantos exóticos, ofertas de quem se aventurou jogando pelo globo, sem medo de contextos ou continentes, de mente aberta, como deve ser.
"Isto começou de forma natural, veio do facto de ter jogado 22 anos como federado. Sempre acostumado a ver jogos, sempre com esse gosto. Quando deixei de jogar ficou mais forte o bichinho de ir ver, comecei por Coimbra e Tondela, acompanhando um amigo jornalista. Estabeleci contactos, conheci o meio, de jogadores a diretores. Recebi uma camisola e as coisas foram evoluindo", conta Luís Paiva, admitindo que nunca imaginou que a empreitada atingisse tamanho efeito inebriante. "Nunca fui de pedir camisolas, nem estive predisposto a isto. Resultou de estar próximo das pessoas, com algumas estruturas de clubes. Imaginei um espaço que já tinha na garagem para receber amigos para entretenimento, ver a bola e comer uns petiscos e fui ajustando", vinca, transfigurando "uma garagem de 150 metros". Luís Paiva agarra os primórdios da sua generosa reinvenção. "Diria que remonta a 2018,mas 90 por cento do que está cá, é posterior, por conta de uma interação que se tornou muito mais regular. As coisas potenciaram-se um pouco por acaso e fruto das amizades", revela, destacando alguns pilares do que foi sendo reunido no MLP8. "Destaco o Paulo Duarte, que doou muita coisa, o Mika, o Rúben Brígido ou o Cláudio Ramos, do FC Porto. O Cláudio é alguém incrível, trouxe para cá muitas camisolas trocadas ao longo da carreira", elogia Paiva.
"Isto não é um museu aberto regularmente, as visitas têm de ser combinadas. O sonho era um dia conseguir transformar isto num espaço aberto, poder doar tudo o que está aqui para um espaço próprio", destapa o plano central que guarda no íntimo. "Bastaria suscitar interesse da Federação, da Liga, da própria Câmara de Leiria, entidades que poderiam dar uma visibilidade diferente e um conceito real de museu", sugere, garantindo que se afastaria da sua exploração. "Continuava a contribuir, a organizar doações. E tenho ideias que poderiam ajudar a fazer algo único no país", atira.
Prazer emocional e não financeiro
Luís Paiva risca qualquer interesse comercial ou de fez colecionismo. "Basicamente o que me interessa é que consigo contar alguma coisa com cada camisola. E devem ser umas 1000 que já devo ter no espaço. E era giro isso ser relatado a um público alvo todos os dias", documenta. "Aqui reside, sobretudo, valor emocional. Não tenho qualquer visão do valor financeiro, mesmo que possa ser alto. Nunca abri mão das peças que angariei para aqui, apesar de algumas ofertas. Sempre expliquei qual o ADN e o tipo de conceito subjacente", explana Luís Paiva.
"A amizade como embrião de tudo"
Luís Paiva tem o espaço assente em vários pormenores, um campo desenhado na parede, onde desfilam todas as camisolas da sua carreira, e uma ala especial para render homenagem a um número que se tornou essencial na coleção e no nome do museu. O 8 está espalhado pelo museu com autoridade, é uma luta titânica pelo protagonismo numa posição cirúrgica para fazer progredir o jogo e imaginação. Atulhado em magníficas ofertas, um festival de prestígio, o leiriense definiu uma divisão própria.
"Na passagem a sénior foi o número que me habituei a escolher, por ser, invertido, o símbolo do infinito, e não tanto de uma ligação a algum jogador. Foi um número que carreguei nas costas 20 anos. O nome do Museu - MLP8 - traduz isso de uma forma normal. Não procuro o oito com mais insistência, mas quando consigo, há um cantinho especial", avalia, não querendo cingir-se a um capricho. "É um museu que quer acolher tudo, camisolas de guarda-redes, de árbitros, de futebol feminino, de modalidades. Só há essa pequena variável", esgrime, sendo posto à prova para chegar-se com craques à conversa. "Tive dois ídolos na vida, um era 10, o Aimar, outro era um 8. A resposta é simples, é o Lampard. Fez parte de um Chelsea fortíssimo, treinado por Mourinho. Tive a oportunidade de ver alguns jogos do Chelsea. Encantava-me o que jogava, a visão, o passe, características que sempre tentei colocar no meu jogo. Identificava-me muito, o Lampard é a base dessa adoração pelo 8. Não tenho um top, é ele!", vinca sem rodeios, explicando a saga pelo manto desse majestoso blues.
"A amizade foi embrião de tudo, o projeto assenta nos conhecimentos. Uma amiga que trabalhava em Londres tinha no seu círculo o Hilário, que ficou anos como treinador de guarda-redes no Chelsea. Foi por aí, o Lampard era o meu ídolo, ele passou essa mensagem", recua, com mais para contar. "Um dia vou à caixa de correio e tinha lá o pacote e uma camisola assinada. Só que era de treino. Uma desilusão! Estava longe do ADN do museu. Fiquei sem saber se podia esperar outra, mas passado um mês veio outro pacote. Era de jogo".
"Épica volta da camisola"
Há camisolas de Messi e Ronaldo, ofertas dos próprios por intermediação de Jorge Mendes, mas Luís Paiva relativiza o peso dos astros maiores do planeta, puxando galões da camisola mais especial que tem exposta. Da União de Leiria de 95/96, que jogou a Intertoto.
"É uma camisola que me traz recordações de jovem. Fiz as camadas jovens do Leiria e habituei-me desde cedo a conviver com o Magalhães Pessoa. Recordo muito os anos dourados da União na I Divisão, que vão dos noventas aos 2000 e tal. E a imagem mais vincada é ver o Continente como patrocinador oficial. Este museu está cheio de aventuras e tento sempre construir alguma história em redor de uma camisola. E foi assim que tive um "flash"", rebobina, desfiando a bonita história. "Passei um tempo à procura de uma camisola com o C de Continente estampado e foram três até conseguir um exemplar. Questionava toda a gente, até em visitas ao museu. Até que um amigo que jogou comigo, disse-me que tinha a camisola em casa. Era do Miguel Xavier. Ele deu-me e assim começou...", expõe Luís Paiva, hoje com o manto autografo por uma grande fatia dos craques dessa União. "A camisola chegou-me e pensei em fazer algo épico. Há uma carga emocional de miúdo. Defini que queria chegar ao maior número de jogadores possíveis desse plantel, que assinassem e deixassem uma mensagem. É isso que tem acontecido em homenagem a uma época fantástica do clube e da cidade", rejubila, não escondendo o brilhozinho nos olhos por esse doce resgaste do passado. "O Miguel Xavier, como homem de origem de camisola, foi o primeiro a assinar. Seguiu-se o capitão Bilro, depois o treinador Vítor Manuel e o Vítor Pontes, que treinava os guarda-redes. Ambos vieram ao museu assiná-la. Depois, somaram-se Mário Artur, Crespo, Reinaldo, Kimmel, Álvaro Gregório, João Armando, Telmo Pinto, Hugo Pinto e Paulo Duarte. Há ainda o Ferreira e João Manuel, que já faleceram...", recua, invadido de outra realização.
"À medida que a coisa crescia, criei um grupo Whatsapp e todos eles começam a ligar-se, descobrindo o que cada um faz. O Telmo Pinto é presidente da Junta de Freguesia da Quarteira, o Crespo ficou a trabalhar no grupo Delta, em Campo Maior. Comecei a integrá-los", confessa Luís Paiva, grato a Tahar por recente visita. "Foi o último a assinar, o próximo talvez o Fua, que está no norte. Eles têm falado de um grande jantar. Ainda faltam seis ou sete. O giro é ouvir história do Vítor Manuel, a falar do que faziam estes 'bandidos' e do que fumavam nos aviões quando iam para a Madeira".