O presidente do CNID - Associação de Jornalistas de Desporto fala dos desafios que se colocam aos jornalistas, desde logo perante as restrições no acesso às fontes com o recomeço dos campeonatos.
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Manuel Queiroz, presidente do CNID, recorda que a "informação desportiva é tão importante como a política" para sublinhar a necessidade de garantir que as limitações impostas pela emergência sanitária não colocam em causa a própria democracia.
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Como interpreta o fato de a Direção Geral da Saúde ter começado por propor o reatamento da I Liga sem qualquer comunicação social nos estádios, tirando o operador responsável pela transmissão?
-Não vale a pena interpretar muito aprofundadamente - havia aí uns papagaios que também diziam que nem pensar em ter mais do que quatro ou cinco estádios e afinal são 17. Andamos todos a aprender, incluindo os epidemiologistas, alguns dos quais também me parecem ser mais comentadores do que cientistas.
A cobertura dos jogos será mínima. Os jornais desportivos serão os menos desfavorecidos e, mesmo assim, só poderão designar dois repórteres, um deles fotográfico. O que fica em causa?
-É evidente que há um problema de liberdade de informação, ou de acesso às fontes, mas estamos num contexto epidemiológico. Nas conferências de Imprensa diárias de ponto de situação também não estão todos os jornais, ou todos os órgãos de Comunicação Social. Há uma parte disto que creio que os jornalistas têm que aceitar em nome de valores como a saúde. Embora eu ache sempre que os jornalistas são soldados da informação, admito também que haja alguns que entendam que não se devem expor. E admito que nas jornadas seguintes possa haver mais desconfinamento, por assim dizer, se tudo correr bem nos primeiros jogos pós-covid. Mas não me esqueço que na Liga dos Campeões, no PSG-Dortmund no Parque dos Príncipes, já à porta fechada, a UEFA só deixou entrar meios dos clubes e a televisão que transmitiu o jogo. O L'Équipe não conseguiu meter um jornalista no Parque dos Príncipes. Algo absolutamente inaceitável e que os jornais têm que denunciar - a informação não pode ser completamente cerceada, porque desde logo isso não faz parte de uma sociedade democrática. A Informação desportiva é tão importante como a política, ou mais importante para muita gente. Ainda este fim de semana recomeçou o campeonato da Ucrânia e só estava prevista a entrada de elementos da televisão e quatro fotógrafos dos próprios meios dos clubes. Isto é inaceitável e não faz sentido em lado nenhum e os Jornalistas não o podem aceitar. Em Portugal devo dizer que a Liga fez bem melhor embora esteja longe do ideal e ainda veremos como acaba.
"A imprensa desportiva é tão importante como a política"
Nestas semanas de pandemia tivemos um vislumbre do mundo sem desporto. E do mundo sem Imprensa desportiva, também?
-Tivemos e não era bonito. A informação desportiva, para muita gente, é a informação principal. E através da Informação desportiva também se passa muita coisa sobre a Informação geral, acho eu. O desporto é hoje uma parte muito relevante da sociedade, seja se o virmos em termos de economia, de sentido de pertença e relação social, de cultura até. Não ter informação sobre tudo isso empobrece a sociedade.
É defensável a tese de que a Imprensa desportiva tem objetivos menos nobres, e uma importância social menor, do que a Imprensa generalista?
-Isso é algo inaceitável e qualquer jornalista desportivo tem normalmente todas as condições para fazer qualquer tipo de trabalho. Sempre foi assim e a informação desportiva tem uma importância enorme para muita gente e só esse critério já recusa essa ideia. E o desporto toca na economia, na política, no social, ou seja, tem um campo de atuação alargado e de uma nobreza indiscutível.
O CNID está em contacto não só com os jornalistas portugueses que trabalham no desporto nas mais diversas plataformas como com as entidades que representam a Imprensa desportiva no estrangeiro. Como é que a situação foi sendo encarada?
-Foi parecido em quase todo o lado. No Peru morreram já 13 jornalistas desportivos, 7 no Equador, 1 na Bolívia. Mas na generalidade dos países há grandes dificuldades de trabalho para os jornalistas desportivos, muitos perderam o emprego, Na generalidade dos países vive-se um momento em que se luta pela vida da Imprensa desportiva, Imprensa em sentido lato.
Houve algumas medidas tomadas no estrangeiro, em defesa de uma Imprensa desportiva autónoma e independente, que gostasse de ver aplicadas em Portugal?
-Infelizmente não vi muitas, se calhar porque estamos ainda no meio da pandemia. Mas a Imprensa desportiva vai passar dificuldades e só terá futuro relevante se for autónoma e independente, se tiver capacidade financeira para isso. E tenho esperança que a Imprensa desportiva consiga fazer uma transição para o digital ganhando qualidade de escrita, qualidade de informação e mantendo o papel. Porque a experiência de folhear um jornal não tem comparação com a leitura de um e-paper. Para mim, pelo menos, não é nada bom ler o jornal - não uma notícia, o jornal - na internet.
"FEZ-SE GRANDE JORNALISMO DURANTE A PANDEMIA"
Manuel Queiroz defende o acesso dos jornalistas aos protagonistas e recorda a importância do trabalho realizado pela imprensa desportiva durante a pandemia.
Outro fenómeno dos anos recentes foi o crescimento brutal das equipas de comunicação de clubes e organizações desportivas. A própria FPF, para além de ter um departamento de média que rivaliza com algumas redações, criou um canal de televisão que tem sido muito discutido enquanto provável caso de concorrência desleal. O futuro da Imprensa desportiva é a propaganda?
-Espero que não seja e não pode ser, porque isso acaba com a Imprensa. Acho que é absolutamente necessário, isso sim, perceber que é preciso mais acesso aos protagonistas, aos atletas e aos treinadores. Nestes tempos sem competições desportivas, os jornais de todo o mundo fizeram grandes trabalhos jornalísticos, houve novidades com webinars, com sessões nos facebooks e nos zooms a que aderiram muitos treinadores em que puderam responder a muitas perguntas sobre o jogo e fizeram-no sem problema. O Gianni Merlo, presidente da AIPS (Associação Internacional da Imprensa Desportiva) dizia há dias, numa sessão promovida em videoconferência, que tinha visto grandes trabalhos nestes tempos, melhores do que havia antes. Todos sabemos que a Informação pura, a transferência do jogador, a saída do treinador e assim são as coisas que mais imediatamente interessa ao público. Mas há muita informação importante para descobrir todos os dias e muitas histórias para contar bem. Tratar bem a língua é essencial e é algo que distingue o jornal da internet por exemplo.
Na opinião do presidente do CNID, as limitações impostas pelo confinamento e pela paragem das competições serviram de combustível para a produção de "grandes trabalhos jornalísticos"
Que preocupações foram partilhadas com o CNID pelos seus associados?
-As preocupações são sobretudo as do trabalho, do salário, da precariedade. Eu respondo sempre que a única forma é sempre mais formação, mais conhecimento, mais investimento no que é o jornalismo e no que pode ser o novo jornalismo, mais multimédia, mas também mais especializado. O CNID está disponível para ajudar com mais formação, com mais ligação internacional. Estamos a tentar ajudar também os países de expressão portuguesa e vamos dentro de pouco tempo ter uma reunião com as congéneres da Guiné-Bissau, de Moçambique, de Angola, do Brasil. E procurámos sensibilizar a Liga para a necessidade de Informação, porque não há desporto profissional sem Informação. O CNID está desse lado, do lado profissional, de procurar ser um parceiro que as federações e as ligas precisam para que não falte a informação crítica. Porque para bajular já há gente que chegue contratada na internet.
"AS TELEVISÕES POLARIZAM DEBATE SOBRE FUTEBOL"
A falta de união e a ausência de uma voz própria são explicações para a forma como a imprensa desportiva é desconsiderada pelo poder político.
Houve muita preocupação, legítima, com a Imprensa generalista por parte de muitos setores da sociedade, mas quase nenhuma com a Imprensa desportiva, embora ela seja de longe a mais afetada. A lepra que o futebol tem para os políticos também abarca a Imprensa da especialidade?
-Acho que os jornalistas desportivos têm alguma culpa nisso. Há hoje grandes preocupações de emprego, mas deviam unir-se mais em torno de associações como o CNID para poderem ter uma voz mais ativa. O Sindicato e a Comissão da Carteira nunca estarão muito atentos aos jornalistas do desporto. É preciso investir alguma coisa na voz própria, na formação, na própria autonomia e até nas relações internacionais. Até porque no fim do dia não há jornalistas desportivos, há jornalistas. O CNID não tem muitos meios, mas pode ajudar os jornalistas, até os estudantes de jornalismo que se quiserem juntar a nós.
Nos últimos anos, a grande mudança em termos de cobertura mediática do futebol deu-se com a tabloidização das televisões. Os jornais desportivos sofreram por arrasto ou, pelo contrário, merecem ser metidos no mesmo saco dos talk-shows de polémica?
-Não gosto muito de generalizações. O meu problema maior é que muita dessa tabloidização é feita com gente que até nem vê os jogos, sabe mal as regras e até faz gala disso. Mas as televisões por cabo conseguiram polarizar muito a discussão sobre o futebol enquanto as rádios, por exemplo, desapareceram em grande parte e precisavam de voltar a ter um lugar importante. Que contrabalançasse o peso que têm as televisões. Que é excessivo porque acaba sempre no lance do penálti e do golo anulado, mas acho que os outros meios deixaram-na muito só em Portugal.