Talento visto como etiqueta unissexo: Conferência O JOGO discutiu o futebol feminino
Iniciativa que resultou de parceria entre O JOGO e Câmara do Marco de Canaveses discutiu evolução do futebol feminino. Comparar número de praticantes masculinos e femininos não faz sentido, mas há, comprovadamente, uma aproximação no nível técnico, conforme demonstra o rendimento da principal Seleção.
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O futebol feminino esteve ontem em debate no Emergente Centro Cultural do Marco de Canaveses, numa iniciativa que resultou de uma parceria entre O JOGO e a autarquia. A ação encaixa no projeto “de valorização” do desporto por parte do executivo de Cristina Vieira, que aprovou uma majoração de 20 euros por cada atleta do sexo feminino inscrita nas diversas modalidades dos clubes. A presidente da Câmara Municipal abriu a conferência orgulhosa por dar este “passo” que demonstra “o empenho em criar um ambiente inclusivo e igualitário”, no sentido, sublinhou, “de proporcionar condições iguais”, sem barreiras.
No fundo, procurou-se lançar uma perspetiva isenta de vieses socioculturais. Pela sua experiência, Mónica Jorge, diretora do futebol feminino da FPF, pede para que “não se entre em modo de comparação” entre homens e mulheres praticantes, porque essa é uma via “muito injusta”, frisando as naturais diferenças fisiológicas, pois “as mulheres têm necessidades” e implicações biológicas próprias. Olhar para o fenómeno dessa forma é redutor e capaz de gerar estereótipos negativos, empobrecendo a dimensão desportiva. Luís Freitas Lobo concorda e junta à discussão a abordagem democrática de um desporto que “pode ser disputado por todos, sem a lógica atlético-fisiológica”, como vincou, preferindo focar-se na “lógica da técnica, da inteligência, da ginga, da matreirice ”, atributos que, diz, já deteta no futebol feminino, sendo que este, ao contrário do futebol masculino, “passou do físico para a técnica” como fator prevalente.
Investimento e “mais envolvimento associativo” nos projetos da FPF, tendo “os clubes como suporte”, constituem, segundo Mónica Jorge, as bases para a “sustentabilidade” de um fenómeno em crescimento. “Que todos tenham as portas abertas às meninas praticantes”, completou.
Falta falar mais dos ciclos menstruais
O tema foi introduzido por Carolina Mendes, avançado do Braga, e não pode ser tabu
Carolina Mendes, jogadora do Braga e internacional portuguesa, introduziu na discussão “a menstruação”, um assunto de que “não se fala muito, mas condiciona os treinos e nem sequer é pensado por quem treina homens”, lembra. “É preciso ter atenção aos dias do ciclo menstrual, porque há risco de lesões. E até posso falar por mim, porque já sofri lesões musculares nessas circunstâncias, além das questões emocionais”, explica.
As mulheres estão expostas a quebras dos níveis de ferro, implicando cuidados inexistentes no contexto masculino. Estudos científicos auxiliam a afirmação de Carolina Mendes, já que concluem que as flutuações hormonais durante o ciclo menstrual aumentam a predisposição da atleta para problemas físicos. De qualquer forma, esta questão , avisa Mónica Jorge, “não interfere na inteligência de treino”, por isso, é importante “uma boa gestão humana” num contexto específico. “É muito importante termos ao nosso lado quem consiga meter-se na cabeça de uma mulher”, defende. “Quando temos no staff mulheres, conseguimos chegar um bocadinho mais longe, porque há a empatia e a capacidade de perceber essa especificidade”.
Eduardo Filipe ofereceu o exemplo do Marco 09, clube a que preside, cuja aposta tem suscitado a cobiça do “scouting” de fora nas jovens futebolistas marcoenses. “Todas as segundas-feiras recebemos emails a convidá-las para irem treinar a outros clubes”, contou, revelando que “o melhor jogador dos sub-10 é uma menina”. Neste escalão as equipas são mistas.
Elas também têm poder
O papel da mulher é extenso e tem potencial para chegar mais longe no mundo desportivo. Alfredina Silva, nome paradigmático do futebol feminino, recordou a importância do jogo de rua, da “liberdade” que oferecem as equipas mistas. Uma participação desafiante para o futuro.
O futebol também é para meninas, mas se recuarmos no tempo, Alfredina Silva, antiga jogadora do Boavista, recorda que tal lema “era uma utopia”. A realidade atual apresenta desafios opostos aos que teve de enfrentar nas décadas de 1970 e 1980. Mas teve a “sorte” de os pais aceitarem a sua opção desportiva e “de poder jogar num clube onde havia muito talento e era respeitado”, lembra. Alfredina não beneficiou das condições de treino e de jogo da atualidade, fez a sua formação “no futebol de rua”, a disputar a bola com os rapazes.
Adversidades que encarou, na altura, como forma de desenvolver o seu potencial como jogadora e que continua a defender. “É na rua que os jogadores e jogadoras têm liberdade de expressão e fazem autoaprendizagem”, diz Alfredina, agora professora de Educação Física. Ou seja, não fala com senso comum, usa a sua valência académica para valorizar a opinião. “Sou apologista que as meninas joguem com rapazes, porque crescem mais como jogadoras”, alegando que “só no contexto feminino não é desafiante”. A prática em equipas mistas, de acordo com a ex-internacional portuguesa, potencia o desenvolvimento desportivo das atletas. Mónica Jorge, diretora da FPF para o futebol feminino, concorda com o raciocínio da antiga futebolista, que jogou durante 25 anos, tendo começado aos 12, e celebrou o facto de “ouvir os adeptos a chamarem as jogadoras da Seleção pelos nomes, para lhes pedir autógrafos”. “Foi o que nos aconteceu de melhor”, atirou.
A realidade ainda não está nos níveis desejados no que concerne às oportunidades, mas está “próxima”, pois, explica Mónica Jorge, “há mais clubes e instituições sensíveis ao papel da mulher no desporto” e não apenas na qualidade de atleta. A dirigente federativa defende que “é preciso ver mulheres a exercer todo o tipo de funções nos clubes”. Ela é um dos vários exemplos que pontuam no contexto desportivo nacional, tendo sido mencionado o caso da presidência do Rio Ave, para a qual Alexandrina Cruz foi eleita.
No auditório do Emergente Centro Cultural esteve outra voz feminina com poderes diretivos, Sofia Teles, diretora de competições da Associação de Futebol do Porto, que reconhece ainda haver “resistências em aceitar mulheres”, acentuando assimetrias. “Não há um mais certo do que outro para ocupar determinado cargo”, atirou Sofia Teles, sentindo que “o futebol continua muito fechado”.
Pedro Pinto, vereador do Desporto da autarquia marcoense, vê no desporto feminino o caminho certo para “potenciar” o aparecimento de novos praticantes, porque “a parte masculina está esgotada”. O autarca recorre à economia desportiva aplicada pelo executivo do Marco de Canaveses, que está a ter repercussões “no aumento de praticantes do sexo feminino”. O estímulo por via da majoração dos subsídios camarários permitirá “criar novos escalões”, cujos reflexos serão sentidos a curto e longo prazo. Pedro Pinto reconhece que “a falta de visibilidade e projeção do futebol feminino faz com que as empresas não apostem tanto”, por isso há aqui trabalho a fazer para se operarem as mudanças culturais muito abordadas na discussão dos dois painéis.
O auditório do Emergente Centro Cultural de Marco de Canaveses contou com grande afluência, sobretudo por parte da comunidade estudantil local. Uma iniciativa organizada em conjunto por O JOGO e a autarquia marcoense, numa decisão “inteligente”, sublinhou Vítor Santos, diretor do jornal, no discurso de encerramento da conferência sobre o futebol feminino.