"A minha mãe chegou a queimar as minhas chuteiras, não acreditava que o futebol fosse para mim"
Fatumata Sissé superou barreiras familiares e sociais para chegar ao futebol profissional em Portugal
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Um dos aspetos mais fascinantes do futebol é a capacidade de inclusão. Apesar da crescente elitização do desporto, a sua essência continua a ser a criação de oportunidades para aqueles que, à partida, teriam poucas hipóteses. É o caso de Fatumata Sissé, avançado de 21 anos do Marítimo. Nascida e criada em Bissau, cresceu num bairro onde as figuras inspiradoras eram poucas, mas isso não a impediu de se apaixonar pelo futebol. Como muitas outras crianças, jogava na rua e desgastava as paredes do bairro com a bola, alimentando o sonho de se tornar jogadora profissional.
A guineense, que chegou a Portugal em 2021, foi a melhor marcadora da II Divisão na temporada passada ao serviço do Fófó, o que lhe valeu o salto para a Liga BPI, com o convite do Marítimo.
O que a motivou a dar os primeiros passos no futebol, ainda tão jovem, e num contexto tão desafiador?
-Quando estava na Guiné, comecei a jogar futebol aos 10 anos, mas apenas com rapazes. A minha mãe não gostava nada da ideia e não me deixava jogar, porque dizia que as meninas não podiam jogar e que o futebol era apenas para os rapazes. Lembro-me que, um dia, quando cheguei a casa, ela chegou a queimar as minhas chuteiras, porque não acreditava que o futebol fosse para mim. Mesmo assim, continuei a jogar.
“Um dia, quando cheguei a casa, a minha mãe chegou a queimar as minhas chuteiras”
Dizia que a sua mãe não acreditava em si. Acha que essa falta de apoio no início foi, de certa forma, o combustível para não desistir?
-Sim, sem dúvida. Um dia, uma senhora viu-me a jogar no bairro, com os rapazes, e chamou-me para me dizer que queria que eu fosse jogar para o Benfica da Guiné. Comecei a jogar lá, foi a minha primeira vez num campo grande, e terminei a época como melhor marcadora, com 60 golos. Aos poucos, os meus pais começaram a perceber a minha notoriedade. Foi então que me chamaram e perguntaram se eu realmente queria seguir este caminho.
“Senti que, sem querer, acabei por revolucionar o futebol feminino na Guiné”
Como foi a conversa com os seus pais, quando teve de lhes explicar que o futebol não era só um sonho local, mas que tinha ambições mais altas?
-No início, estavam muito preocupados, principalmente em relação ao futuro. Perguntavam-me como iria sobreviver a jogar futebol e como iria comprar uma casa. Eu expliquei-lhes que não ia ficar apenas na Guiné, que sempre soube que algo melhor estava à minha espera. Só então começaram a perceber a dimensão do que estava a fazer. Afinal, toda a gente falava de mim. Senti que, sem querer, acabei por revolucionar o futebol feminino na Guiné.
Em 2021, com apenas 18 anos, deu o salto e mudou-se para Portugal. Como foi esse desafio?
-Uma mudança enorme. Enquanto estava no Benfica, fui chamada à Seleção Sub-20 e, num jogo contra a Seleção A, a empresária Juca, que estava a assistir, gostou muito de mim. Ela falou com o meu treinador e com o presidente do Benfica e disse que queria trazer-me para Portugal. Os meus pais ficaram felizes com a oportunidade. Cheguei cá com 18 anos para jogar no Valadares. Comecei a treinar lá, mas, como o meu empresário não chegou a acordo com o clube, acabei por ir para o Estoril durante uma época e depois para o Fófó, onde passei um ano.
“Há dois anos, joguei contra o Marítimo e até marquei um golo. Acho que o míster Albano ficou com boa impressão de mim”
Na temporada passada, foi a melhor marcadora da II Divisão, com 25 golos em 21 jogos. Isso deu-lhe finalmente o passaporte para a Liga BPI, com o convite do Marítimo.
-Há duas épocas, joguei contra o Marítimo no play-off e até marquei um golo no segundo jogo. Acho que, desde então, o míster Albano ficou com uma boa impressão de mim. Depois de ter sido a melhor marcadora na época passada, ele não hesitou em me contactar. As condições oferecidas pelo Marítimo agradaram-me imenso.
“Nunca imaginei que, ao chegar à Liga BPI, fosse logo jogar no onze inicial no primeiro jogo. Isso demonstrou confiança”
Chegou e assumiu-se logo como uma atleta importante para a formação maritimista.
-Nunca imaginei que, ao chegar à Liga BPI, fosse logo jogar no onze inicial no primeiro jogo. Isso demonstrou a confiança que a equipa técnica tem em mim, e eu sinto o peso dessa responsabilidade. Vou dar tudo de mim para não desiludir e para provar que fui uma boa aposta. Sinto que estou num nível mais alto e que as exigências são ainda maiores. Mas é exatamente isso que me motiva a continuar a melhorar.
"A minha veia goleadora também foi alimentada pelo contexto em que nasci"
Fatumata admite a O JOGO que sempre soube que a sua capacidade de marcar golos ia além de um simples dom. “Acho que a minha veia goleadora já nasceu comigo, mas também foi alimentada pelo contexto em que nasci”, afirma a guineense, que assume que crescer a jogar com rapazes trouxe-lhe uma vantagem, e a pressão de competir num ambiente onde poucos acreditavam no potencial das raparigas apenas reforçou a sua determinação.
“O facto de jogar com os rapazes e de saber que ninguém acreditava nas raparigas no futebol também me levava a querer ainda mais. Com isto tudo quero dizer que sim, tenho o faro de golo apurado, mas também porque o procurei”, remata.