O Bohemians 1905 é mais do que o clube do emblemático jogador checo que inventou um penálti, e que agora até é o presidente. Batizados por australianos, os cangurus de Praga têm uma irresistível história de sobrevivência, incluindo uma batalha nos tribunais para recuperar o nome que tinha sido vendido a outro emblema para fazer frente à crise financeira...
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O estádio Dolicek, casa do Bohemians 1905, é modesto e passa quase despercebido entre os prédios de Vrsovice, um dos bairros de Praga, a capital checa. Os portões abertos são um irresistível convite a entrar e não há ninguém que se atravesse para barrar o caminho até ao relvado. Fotografia para aqui, fotografia para ali. É tudo tão acolhedor que apetece bater a uma porta e perguntar: o senhor Panenka está?
A porta da loja do clube está mesmo ali à mão e não custa nada experimentar. Há três clientes lá dentro, e depois chega mais um, mas só dois deles estão entretidos a ver as prateleiras de cachecóis, camisolas e afins; pelo que se percebeu, os outros pediam informações sobre bilhetes, porque o campeonato arrancava nesse fim de semana. E não, o senhor Panenka não estava.
"Ele é o nosso presidente não executivo, mas costuma vir aos jogos", explica, sorridente, o rapaz atrás do balcão, prontificando-se a chamar Tomás Mutinsky para informações detalhadas sobre a história do clube e do seu jogador mais emblemático, que ocupa agora a cadeira de presidente.
Tomás é o assessor de imprensa e soma-se aqui como outro exemplo da informalidade: calções, t-shirt e a desculpa de que terá de ser uma conversa rápida por estar ocupado com os preparativos do jogo de domingo. A pressa, afinal, não se confirma. É ele quem guia O JOGO até à sala que serve de museu, onde se resume em poucos metros quadrados a incrível história dos cangurus de Praga. A adjetivação, aqui, não é capricho.
Batismo na Austrália de onde veio o canguru
Fundado em 1905, então como AFK Vrsovice, viu-se em 1927 forçado a mudar de identidade durante uma digressão pela Austrália. A língua dos organizadores enrolava a tentar pronunciar o nome original e não houve outro remédio senão rebatizá-los: meus amigos, disseram-lhes os australianos, aqui passarão a ser os Bohemians de Praga. Essa digressão, de 20 jogos, foi um sucesso estrondoso - 15 vitórias, dois empates e três derrotas; 94 golos marcados e 50 sofridos. O regresso à capital checa, com receção à altura, fermentou a vontade de adotar o novo nome e de lhe acrescentar o canguru como símbolo oficial. Houve nas décadas seguintes mudanças pontuais na designação, que pouco importa detalhar, mas a identidade Bohemians acabaria por estabilizar em definitivo, porque se tornara popular. Aliás, tão popular que seria cobiçada por outros emblemas. Já lá vamos.
Campeões depois de vender o craque
Antes de retomar o fio à história coletiva, há um inevitável parêntesis a fazer em nome da maior figura do clube. Há 40 anos (20 junho de 1976), Antonín Panenka surpreendia o mundo, e mais concretamente o guarda-redes alemão Sepp Maier, com um penálti inovador que decidiu a final do Europeu a favor da então Checoslováquia. Nascia aí o penálti à Panenka, ensaiado vezes sem conta pelo jogador no campo de treinos que servia o Dolicek. "Era ali", aponta Tomás. O "ali" podia muito bem ser agora um espaço de peregrinação, em jeito de vénia ao talento do atual presidente. Mas não é; está antes transformado num improvisado parque de estacionamento.
Sobra a memória, recuperada muitas vezes nos intervalos dos jogos do Bohemians 1905. Para passar o tempo, como acontece em muitos estádios, há atividades propostas aos adeptos e uma das mais populares, segundo conta Tomás, é a marcação de penáltis, nos quais, claro, se tenta imitar Panenka, que vê tudo da bancada, onde a separação entre público e VIP se resume a uma folha A4 a dizer "VIP". As cadeiras, essas, são iguaizinhas.
O clube transpira Panenka por todos os poros, mas não deixa de ser irónico que o único título de campeão tenha sido conquistado dois anos depois da saída dele para o Rapid Viena - partiu em 1981 e o Bohemians fez a festa em 1983. "Sim, à vezes ele lamenta-se por não ter sido campeão, mas depois diz que também o foi em dois anos seguidos na Áustria e festejou o nosso título na mesma", explica Tomás. À boleia do museu, acrescenta à conversa uma curiosidade dessa época de ouro: Hruska era o guarda-redes titular (fez 28 jogos), mas na seleção quem defendia era o suplente do Bohemians, Borovicka (2 jogos apenas). Hruska ficava no banco, num mistério que não soube justificar.
Bohemians há muitos com tribunal pelo meio
Os tempos de glória, que prosseguiu numa caminhada até às meias-finais da Taça UEFA de 1982/83, onde viria a ceder ao Anderlecht, foram-se esbatendo nos anos seguintes. Financeiramente, a situação agudizou-se de tal maneira que, em 2005, os gestores do emblema aceitaram uma oferta de outro clube, o Strizkov, vendendo-lhes o nome e o símbolo. Os adeptos ficaram furiosos, não aceitaram a decisão e investiram eles próprios na criação de um digno representante que os enchesse de orgulho. Nascia assim, em 2005, o Bohemians 1905. E Panenka fez questão de vincar que, para ele, era este último que contava como verdadeiro.
Simplificando os capítulos, e numa ironia do destino, os dois Bohemians acabaram por cruzar-se há pouco tempo na I divisão checa. O mesmo nome, o mesmo símbolo e o início de uma batalha nos tribunais para decidir qual dos dois tinha o legítimo direito de os usar. A questão mantém-se pendente, após uma primeira decisão favorável ao 1905, mas passível de recurso. O Bohemians de Praga, o ex- Strizkov que comprara o nome, recusou-se a jogar contra o rival, foi castigado com perda de pontos e acabou por afundar-se nos escalões inferiores, onde se mantém. O Bohemians 1905 parece ter estabilizado na divisão principal - voltara em 2009 depois da tal confusão de 2005, ainda desceu em 2012, mas regressou na época 2013/14. Até hoje.
Usar a casa do Slávia: nem pensar!
A força de vontade dos adeptos tem sido crucial a traçar o destino do Bohemians 1905. Cabem cerca de 5000 no Dolicek e, segundo Tomás, quase 1600 estão garantidos por antecipação com a venda de lugares anuais. Poucos, mas bons. Afinal, podiam estar confortavelmente instalados no Eden Arena, casa do Slávia, a pouco mais de um quilómetro de distância, mas bateram o pé à ideia que chegou a ser obrigatória. Em 2009 tiveram mesmo de engolir os jogos caseiros no recinto do rival, porque o Dolicek não tinha as condições mínimas exigidas, mas não descansaram enquanto não devolveram o clube ao seu campo original. Uma coleta de verbas permitiu fazer obras e, sem lhe retirar o embrulho modesto, torná-lo aceitável aos olhos da liga. E, já agora, muito acolhedor aos olhos de quem o visita...