Arnaldo Abrantes trocou o atletismo pelo futebol. Não, não virou jogador, mas é médico da equipa do Estoril, uma função que o deixa tão concentrado durante um jogo que, por vezes, nem vê os golos
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Ao ver um jogo do Estoril na televisão, provavelmente já ficou com aquela sensação de que já viu o médico do clube numa pista de atletismo, a correr para quebrar algum recorde. Pois bem, esse pressentimento está correto. Depois de 11 anos na alta competição, tendo participado em dois Jogos Olímpicos, Arnaldo Abrantes deixou as corridas para se dedicar a cem por cento à medicina e é o responsável pelo departamento médico dos canarinhos. "Quando é preciso entrar em campo, os jogadores ainda brincam comigo e dizem que, como era velocista, vou chegar mais rápido do que o fisioterapeuta. Mas eu até o deixo ir à frente para não ficar envergonhado", brinca o antigo atleta, em conversa com O JOGO, que, ainda em tom de brincadeira, considera que não é "mais rápido do que os outros médicos a entrar em campo", até porque está "em baixo de forma e os relvados são escorregadios".
Quando é preciso entrar em campo, os jogadores ainda brincam comigo e dizem que, como era velocista, vou chegar mais rápido do que o fisioterapeuta
A experiência de Arnaldo Abrantes, de 30 anos, na Amoreira começou em fevereiro, substituindo Vítor Coelho e Gonçalo Barradas no departamento médico. "Foi uma coisa muito rápida. Tive uma reunião com o administrador da SAD, João Ribeiro, e tinha de ser uma resposta quase imediata, porque precisavam de uma pessoa para o sábado. Apresentaram-me um projeto ambicioso e não podia recusar", explica o ex-velocista, que, quando estava a estudar, já se imaginava numa posição semelhante: "Sempre tive uma grande paixão pela medicina desportiva, por razões óbvias. E o futebol, para um médico desta área, é o mais gratificante. Já tinha trabalho como médico na Federação Portuguesa de Atletismo, mas isto é completamente diferente."
Os golos perdidos
A estreia de Arnaldo Abrantes no banco do Estoril foi a 18 de fevereiro, no empate em casa do Moreirense (1-1). Calmo, o médico canarinho não teve de tomar decisões difíceis nessa partida, tal como nas seguintes, contra o Sporting, Benfica e Rio Ave. Já na deslocação ao terreno do V. Guimarães, que terminou com uma igualdade (3-3), o central Gonçalo Brandão e o extremo Licá tiveram de sair por lesão. "Foram decisões que tivemos de tomar. O diagnóstico tem de ser rápido e temos de decidir com a informação que é dada pelo jogador, que muitas vezes está quente. Na altura, temos de usar o conhecimento que temos da medicina, das lesões e, por vezes, até a própria intuição", conta. O ex-velocista reconhece que este diagnóstico rápido deixa "a equipa médica numa posição complicada, porque não há muito tempo para decidir nem para fazer testes, ao contrário dos consultórios médicos".
Não usufruo do espetáculo, porque muitas vezes estou com os olhos num jogador e dou comigo perdido nesse raciocínio. Por vezes, não vejo os golos
Fã de futebol desde muito novo, Arnaldo Abrantes viveu intensamente o Euro"2004 e ia regularmente ao estádio, quando era atleta do Benfica e do Sporting. Mas agora, sentado no banco de suplentes, vê a modalidade de forma diferente. Por vezes, a preocupação com um atleta condicionado é tanta que perde momentos importantes do jogo. "É uma perspetiva diferente, não usufruo do espetáculo, porque muitas vezes estou com os olhos num jogador e dou comigo perdido nesse raciocínio. Por vezes, não vejo os golos ... Mas também tenho de tentar estar atento a todos os jogadores, uma vez que, na medicina desportiva, observar a forma como acontece a lesão é metade do diagnóstico", sublinha.
A agenda de uma equipa de futebol implica poucas folgas e trabalhar aos fins de semana, algo que não é estranho para um antigo atleta olímpico. "Quando estava na alta competição, andava sempre de mala às costas, porque tinha provas aos sábados e domingos. No futebol, o esquema não muda muito", elucida o médico, ele que, depois dos treinos, se mostra "disponível para esclarecer dúvidas dos jogadores por telemóvel ou mensagem".
Lesões diferentes do atletismo
Desde que decidiu que queria ser médico, Arnaldo Abrantes começou a acompanhar de perto o trabalho dos médicos da Federação Portuguesa de Atletismo "para perceber melhor as lesões e tentar também melhorar o desempenho". Contudo, "enquanto competia não conseguia ter um diagnóstico muito apurado". "Pensava ainda muito como atleta e confiava mais nos médicos da Seleção Nacional de atletismo. Onde o curso me ajudou foi na parte da nutrição, na importância do sono e em não ingerir bebidas alcoólicas", aponta.
Neste ingresso no futebol, o antigo atleta constatou que as lesões variam consoante a modalidade. "Até mesmo dentro do atletismo há problemas físicos diferentes. Um lançador do peso não vai ter a mesma lesão que um velocista ou um saltador em comprimento. O futebol também tem uma particularidade, principalmente porque há confronto físico. Isso para um médico é um desafio muito interessante porque o jogador pode ter uma lesão em qualquer parte do corpo", adianta Arnaldo Abrantes.
Onde o curso me ajudou foi na parte da nutrição, na importância do sono e em não ingerir bebidas alcoólicas
Apesar de considerar que há excelentes médicos nas equipas de futebol que nunca praticaram desporto, o responsável clínico dos canarinhos considera que a experiência como atleta é uma mais-valia nesta função e "ajuda a criar maior empatia com os jogadores". "Dou-lhes conselhos baseados na minha experiência pessoal no atletismo e transmito que também percebo a frustração deles e a dor, porque também já as tive", observa.
Uma clínica para atletas amadores
Para dar apoio a vários atletas, Arnaldo Abrantes fundou em 2015 a Clínica Athletika que funciona num ginásio em Linda-a-Velha, onde dá consultas particulares. "A ideia surgiu depois de percebemos que havia atletas amadores que tinham planos de treino semelhantes aos de alta competição, mas sem o acompanhamento médico adequado. O que queríamos era passar o nosso conhecimento a um público que faz meias maratonas, ou pratica padel", justifica.
Patrícia Mamona, Nélson Évora e Tsanko Arnaudov são alguns dos atletas que frequentam a Clínica Athletika, tal como a apresentadora de televisão Isabel Silva, que costuma correr meias maratonas e maratonas. Além de Arnaldo Abrantes, também fazem parte do corpo clínico Ricardo Antunes (ex-campeão nacional de ténis de mesa) e o massagista Norberto Fonseca (atleta do taekwondo).