Sempre foi mais do que um jogador, Nakata era uma figura de culto, um herói exótico, com conceitos de moda de vanguarda, sentindo toda essa excelência italiana da alta costura
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Jogou três Mundiais, participou em dois Jogos Olímpicos, foi campeão italiano pela Roma de Capello e fez quase 200 jogos no Calcio... Despediu-se do futebol antes dos 30 anos, após época em Inglaterra, no Bolton. Saiu de cena feliz, sem fantasmas nem dissabores, e apenas centrado noutros mundos. Ninguém esquece Hidetoshi Nakata, o mais luminoso fenómeno asiático no futebol, talento puro que aterrou em Itália no final dos noventas, caprichando o seu requinte no Perugia, Parma, Roma, Fiorentina e Bolonha. Nunca um jogador da Ásia havia gerado tanto encanto e ruído, mediatismo exacerbado e um Japão em transe pela história radiosa de um filho do Sol Nascente, inspirado em Tsubasa.
Sempre foi mais do que um jogador, era uma figura de culto, um herói exótico, com conceitos de moda de vanguarda, sentindo toda essa excelência italiana da alta costura. Com o futebol na prateleira... sem qualquer vício em o seguir, o antigo médio tomou outro rumo, quis conhecer o seu Japão profundo, entender certas raízes e decifrar o modo de produção do saké. É no ramo desta bebida nobre japonesa, onde o álcool é combinado com arroz fermentado, que Nakata expande os seus horizontes, aceitando partilhar tudo do seu novo oásis, mergulhado em provas, concursos, descobertas, aromas e paladares.
“Eu comecei a jogar futebol com oito anos, nessa época o Japão nunca tinha jogado um Mundial, não tinha qualquer liga profissional e, dificilmente se assistia a jogos estrangeiros na televisão. Eu apenas comecei a jogar porque gostava de o fazer, sem pensar em ser profissional ou disputar um Mundial. Só pensava em melhorar o máximo que conseguisse pelo meu próprio desfrute”, recorda o antigo craque japonês. “Aos poucos fui sendo selecionado para a seleção, o que aconteceu em vários escalões. Ao conhecer o mundo, quis tornar-me profissional e jogar um Mundial. Nunca sendo isso um objetivo primordial, era unicamente divertir-me”, reitera Nakata, que entrou em Itália pela porta do Perugia, despertador de multidões, e se fez icónico em Roma, ao lado de Totti e Batistuta numa caminhada dos giallorossi para a história. “Quando deixei o futebol, estava fisicamente apto e ainda com contrato com a última equipa. Mas eu já via o futebol como algo que se tornara um negócio maior, não era um ambiente que me fascinasse e decidi retirar-me, sem qualquer interesse em ser treinador ou comentador”, desabafa. “O futebol foi uma paixão de criança, ao deixá-lo precisava de encontrar outra coisa a que me dedicar, mas novamente com paixão. Para descobrir isso, achei bom viajar pelo mundo e conheci mais de 100 países”, relata a sua incrível odisseia, essa incessante e atrevida busca de um caminho.
“À medida que fui aprendendo mais sobre todos os lugares, percebi que também não sabia nada do Japão. Regressei ao meu país e iniciei uma descoberta da cultura japonesa a partir de 2009. Dediquei-me a visitar agricultores e artesãos envolvidos em atividades tradicionais, como indústrias e cervejarias de saké. Percorri 47 províncias do Japão, senti a excelência e o potencial do produto. Percebi que me queria dedicar a este negócio, era a minha nova paixão! Ainda viajo imenso pelo Japão. São já 15 anos de descoberta até ao trabalho atual. Comecei com o saké mas também criei uma nova marca de chá. Pretendo investir também os meus recursos no artesanato e agricultura”, confidencia.
Amado pelo futebol, Nakata quis desvincular-se dele. “Sempre achei importante não escolher uma profissão em função do dinheiro. Comecei por ser futebolista quando não havia profissionalismo no Japão. Fundamental é sentir paixão”, defende o japonês, que baseia as suas publicações no seu investimento pessoal, vendo o retorno da felicidade e também o carimbo de aprovação de tantos brilhantes ex-companheiros. Entendendo produtores e desbravando essências locais, interagindo e aprimorando ferramentas de trabalho. “Passo os meus dias a viajar pelo Japão e a estudar a cultura do saké, que está enraizada e relacionada com a natureza da terra. Mas também vemos grandes alterações a este nível pelo globo. Temos rapidamente que saber viver de uma forma que respeite mais a natureza, os bens naturais. Temos de ir ao encontro de uma felicidade próxima da natureza e não da felicidade superficial. Acredito que a agricultura deve sustentar a alimentação diária de toda a gente, incluindo o saké e o chá japonês. Pode tornar-se ainda mais importante no futuro e desempenhará um papel importante nas nossas vidas. Tento sempre pensar num sistema que garanta a agricultura como um trabalho altamente necessário”, argumenta Nakata.
Falar com Nakata não dispensa uma introdução ao poder atrativo de Capitão Tsubasa, uma série de anime de culto que forjou muitos jogadores quando o Japão não conhecia qualquer tradição futebolística. “Se não fossem os desenhos animados de Oliver e Benji, eu teria sido jogador de basebol, nunca de futebol. Quando era mais jovem não conseguia ver futebol na televisão; a inspiração e o entendimento do jogo vieram naturalmente do que podia ler e ver de Tsubasa. Foi aí que li e vi retratados golos de pontapé de bicicleta e consegui fazê-lo na Série A. O que fiz no futebol foi graças a Tsubasa”, atira, sem rodeios, comentando ainda as invasões japonesas a Perugia. Reza a lenda que 5000 mil compatriotas foram ao Renato Curi ver a estreia de Nakata em Itália num 3-4 com a Juventus. O japonês deixou a sua marca e bisou. “Mudei-me para Itália com 21 anos e foi difícil controlar a pressão. Mas talvez seja mais complicado hoje, porque as redes sociais antes não eram tão desenvolvidas”.