"Quinito, eu sei que houve uma tragédia, mas não nos deixes órfãos. O futebol precisa de ti", afirmou Henrique Calisto, antes de o antigo treinador falar publicamente pela primeira vez desde a morte do seu filho, de forma trágica, em 2009.
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Na semana que passou, o futebol nacional emocionou-se com as palavras de Quinito, que foi homenageado no fórum de treinadores que se realizou em Setúbal. O antigo treinador, que foi apresentado em palco por Henrique Calisto, disse sentir-se culpado por ter durante tantos anos trocado o filho, que nunca "chegou verdadeiramente a conhecer", pelo futebol. "Neste momento estou a perder por 50-0. Não valeu de nada o que ganhei, o que perdi, o que empatei, se no fim sofri uma derrota por 50-0. Vou tentar sair desta derrota, alguma situação que me permita ir a prolongamento ou a penáltis", afirmou.
Por que razão decidiu a Associação Nacional de Treinadores de Futebol (ANTF) homenagear Quinito?
Primeiro pela obra: a forma irreverente como ele vivia a vida, o ser diferente, a alegria do futebol. Tudo isso é muito mais importante do que qualquer título. Qualquer treinador de Benfica, FC Porto ou Sporting arrisca-se a ser campeão; só precisa de ser o homem certo no lugar e tempo certos. Muito mais importante do que os títulos, que por vezes são circunstanciais, é o saber e a forma de viver. Por exemplo, o Fernando Santos não ganhou muitos títulos na Grécia e foi considerado o treinador da década e escolhido para selecionador. Aqui, isso era impossível; a sociedade portuguesa valoriza quem tem poder e dinheiro. Nós quisemos, nomeadamente a ANTF, que o exemplo de vida do Quinito fosse valorizado e festejado. E depois também quisemos tentar recuperar o Quinito, sabendo do drama que está a viver.
Quiseram tirá-lo do isolamento em que tem vivido nos últimos anos...
Sim, a associação e os amigos próximos sentiram que é preciso devolvê-lo à vida. Aliás, a vida que ele tem feito não é vida. Ele tinha uma constante alegria e espírito positivo. Para mim, é muito mais valorizável este exemplo de vida do que a de alguns exemplos de ganhadores que são fruto da circunstância.
Acha que ele está a recuperar da depressão em que entrou?
Não sei, mas acho que foi muito importante ele falar em público. Há muitos Quinitos à nossa volta, não pelo drama pessoal que o projetou para esta situação, mas por outras circunstâncias: os desempregados que têm vergonha de não ter trabalho e que, sem dinheiro, ficam em casa... e depois aparecem depressões.
Que lição tira do drama vivido por Quinito e do seu discurso?
A lição é que o futebol é a coisa mais importante das coisas menos importantes. A forma obcecada como se vive o futebol leva-nos a que, quando somos colocados perante valores maiores, desçamos à terra. O exemplo do Quinito é um balde de água fria.
Parece-lhe ter existido algum aproveitamento mediático?
Há um determinado aproveitamento, mas o Quinito transmite uma mensagem que é anormal. E o anormal chama. O que é rotineiro não capta audiências.
O drama também chama audiências...
Claro, mas também é a nudez da vida. Ele relatou o seu drama dizendo que não valeu de nada, teve o discernimento de ir contra milhares de pessoas que queriam ser Quinitos e que fariam tudo para serem, por exemplo, treinadores do FC Porto. E ele chegou e disse: "Não vale a pena." Ele obriga-nos a repensar a nossa forma de viver, porque ele atingiu um patamar superior na sua profissão e trocava isso por poder ter estado mais tempo com o filho.
(...)
Pelo estatuto socioprofissional, alteramos os valores e este é o nosso padrão de vida. No fundo, todos fizemos aquilo, só não tivemos a infelicidade de nos acontecer um drama como o dele. Eu estive dez anos fora: se durante esse tempo tivesse morrido um filho meu, eu hoje teria o mesmo discurso do Quinito. É preciso lutar pela nossa afirmação, mas nunca desprezando aquilo que é fundamental. Nem o Quinito se quer ver como desgraçadinho: ele não é um desgraçadinho, é um senhor. E teve uma enorme coragem ao dizer que teve culpa e que rejeitaria fazer o mesmo. É um exemplo para os mais jovens em todas as profissões.
Foi fácil convencê-lo a ir ao fórum de treinadores?
Não, mas o José Pereira e o José Rocha foram fundamentais. É uma mensagem de um estilo de vida que ele viveu e que hoje não voltaria a fazer. Este arrependimento é um ponto de partida para pensarmos nas nossas escolhas.
SAIBA QUE
Henrique Calisto conheceu Quinito na década de 1980. Treinadores da mesma geração, estiveram juntos, por convite de Pedroto, na direção do Sindicato Democrático dos Profissionais de Futebol (Sinbol), que veio a dar origem à atual Associação Nacional de Treinadores de Futebol (ANTF), de que Calisto foi o primeiro presidente. Desde jovem que Calisto se envolveu, em paralelo com o futebol, na política, primeiro nas lutas estudantis, depois como militante do PS, do qual acabou por ser expulso, e presidente da Junta de Freguesia de Matosinhos. Como treinador, leva já uma longa carreira, que começou em 1980 no Boavista. Esteve dez anos no Vietname e está atualmente sem clube.