Diz que, a cada morte, é mais um bocadinho de si que parte. Mas ficam as memórias e Fernando Tomé tem-nas todas bem guardadas e na ponta da língua. "A melhor forma de homenagear essas pessoas é contar os momentos que vivemos com elas"
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Foi no dia em que Fernando Mendes faleceu, aos 78 anos, vítima de doença prolongada, que conversei com Fernando Tomé. A ideia era que a antiga glória do Vitória de Setúbal, Sporting e União de Leiria recordasse o dia em que defrontou Johan Cruyff, um dos melhores jogadores de todos os tempos, desaparecido a 24 de março, precisamente uma semana antes.
O Sporting jogou na década de 1970 um torneio amigável, em que Johan Cruyff jogava pelo PSG, um dos adversários desse torneio...
Foi em 1975. Eu fui a esse torneio e levei um grande baile do Cruyff e do Dzajic, que tinham sido convidados para reforçar o PSG. Nós até marcámos primeiro, com um golo do Marinho, mas o PSG empata ainda antes do intervalo. Na segunda parte é que foi o busílis da questão: o Cruyff e o Dzajic encostaram-se à esquerda e eu fiquei ali, no meio deles, a vê-los passar [risos]. Eu bem chamava pelos meus colegas, mas eles fingiam que não me ouviam [risos]. De tal modo que o já falecido Fernando Riera, na altura o treinador da equipa, acabou por me substituir. O Cruyff e o Dzajic eram dois jogadores extraordinários, especialmente o Cruyff. Que estejam em descanso eterno.
O PSG ganhou essa partida?
Por 3-1. E acho que também ganharam o torneio, onde participavam ainda o Valência e o Fluminense.
Na altura, o que mais o impressionou ao jogar com Cruyff?
A forma elegante como jogava, tinha qualidades inatas para a prática desportiva e, ao mesmo tempo, entregava-se ao jogo de uma forma anormal. E, como é conhecido, ao intervalo fumava um cigarro e bebia um copito de whisky. Bem... No Sporting também tive dois colegas que iam fumar ao intervalo, mas depois davam o litro em campo.
Quem?
Não quero referir nomes! Sabia que nos meus tempos de jogador era permitido beber um copo de vinho às refeições? Nos estágios, os jogadores que bebiam vinho queriam partilhar mesa com os que não bebiam, para poderem ficar com o vinho deles [risos].
Voltando ao torneio com o Cruyff, recorda mais alguma história?
Lembro-me que o torneio disputou-se em Paris e o estádio esteve sempre cheio. O Cruyff já era uma grande vedeta nessa altura. E lembro-me que o Sporting foi, nessa prova, a primeira equipa portuguesa a jogar com publicidade nas camisolas. Foi histórico.
Soube há pouco da morte de mais um antigo jogador, o Fernando Mendes...
É uma notícia tão triste. Já há muitos anos disse que foi um dos jogadores que desde sempre mais me marcaram. Já não jogámos juntos, ele era mais velho do que eu, mas cruzámo-nos na estrutura do Sporting, e também em 1979/80, o Sporting foi campeão nacional após vencer em Leiria, por 3-0. Ele era o treinador do Sporting, eu do União de Leiria e, no final do jogo, chamou-me para ir ao balneário deles. Eu fui, mas naturalmente não pude festejar. O Fernando Mendes era uma pessoa espetacular.
Já falámos de Cruyff, Fernando Mendes, referiu também o Riera. Chega-se a uma altura em que muitas das pessoas que fizeram parte da nossa vida começam a desaparecer...
É aquilo que a vida nos dita. Costumo dizer que é mais um bocadinho de mim que vai. A melhor forma de homenagear essas pessoas é contar as suas histórias e os momentos que vivemos com elas. Por exemplo, há uma história com o Bastos que é engraçada e aconteceu nesse torneio de Paris, onde esteve Cruyff. Costumávamos tratar o Bastos por rapagão, por ser um defesa-central corpulento. Num dos dias do torneio, quando estávamos no balneário a fazer banhos de imersão, entraram três homens por ali dentro a perguntar onde estava o "rapagone con el numero 3". Falavam em castelhano e eram o treinador, presidente e diretor do Saragoça. Assim que chegámos a Lisboa, aconteceu a transferência dele.
É um natural contador de histórias. Nunca quis escrever as suas memórias de jogador?
Tenho sido realmente aliciado para escrever um livro, só que há um tempo quando já tinha algumas páginas escritas, desapareceram-me todas do computador. Perdi tudo e ainda não arranjei coragem para começar a escrever tudo de novo. Agora, felizmente, já percebo um bocadinho melhor de computadores, já não vou deixar que aconteça o mesmo. Há 20 e tal anos, contava uma história todas as semanas num jornal que era o "Setúbal Desportivo". Gostava muito.
SAIBA QUE
Fernando Tomé reformou-se há três anos, mas continua a ser presença diária no Estádio do Bonfim. Vai-se entretendo a falar com a "rapaziada" - conforme o próprio descreve - e faz de relações públicas nos dias dos jogos, recebendo os convidados do clube sadino. "Nunca digo que não ao Vitória e à cidade de Setúbal", comenta o antigo médio, atualmente com 68 anos, que é uma verdadeira biblioteca viva e vibrante sobre a história do futebol em Portugal, em especial a dos clubes por onde passou. O União de Leiria foi um desses clubes, aquele onde pendurou as chuteiras, em 1980, para logo iniciar o seu percurso como treinador, o qual veio a terminar em Setúbal, depois de passagens por Lixa e Penafiel.