O último selecionador nacional português de hóquei em patins campeão do Mundo deixou a modalidade, notícia na altura avançada por O JOGO, e voltou ao ensino, onde se sente feliz. O Valongo foi o último clube que treinou e esta é a primeira época em que está fora da modalidade, à qual não fecha a porta, mas a voltar será noutro cargo. Dá aulas e tem tempo para fazer a Nacional 2 de moto.
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À chegada ao Centro Escolar da Gandra, em Águas Santas, na Maia, Renato Garrido recebe a reportagem de O JOGO invertendo os papéis. "Então, como estão as coisas lá pelo jornal?". A pergunta, vinda de quem vem, nem surpreende, mas Renato explica-se: "Lembro-me bem do que vocês passaram, naquela altura em que, como muitos, dei o meu testemunho. Eu sempre fui pela regionalização e, para mim, vocês, O JOGO e o JN, são referências do Porto e do Norte. São vozes que têm de existir, haja o que houver. Sem vocês, muito do que se passa no Norte do país era como se não se passasse, no vosso caso, no desporto".
Renato Garrido, o último treinador a levar Portugal ao título de campeão mundial de hóquei em patins, em Barcelona em 2019, deixou a modalidade na temporada passada e voltou a dar aulas do primeiro ciclo. "Eu nunca deixei de dar aulas, agora, a este nível de ensino, é que já não dava há alguns anos. Mas dava Educação Física na faculdade, em colégios. Mas percebo o que quer dizer. Voltar à escola sempre esteve nos meus planos", conta, enquanto explica como "as coisas mudaram, com quadros interativos, uma espécie de iPad gigante". "Sempre tive em mente regressar. A falta de pessoas, de professores, ainda me fez pensar em voltar mais rápido e agora não vou abdicar desta minha parte profissional, o ensino", continua, dizendo que, "aos 52 anos", é o "professor mais jovem da escola".
Pegando no tema que o próprio puxou, da regionalização, eis que a pergunta se impõe: nunca sentiu, como selecionador nacional, qualquer constrangimento por assumir essa postura, essa convicção regionalista? "Eu nasci no Porto, cresci no Porto, a minha vida é toda no Porto e esta é a cidade que eu adoro e trago no coração. É uma cidade única, temos rio, temos mar, temos serras por perto, temos tudo. Sou um bairrista assumido, mas sei que temos um país magnífico, de Norte a Sul, desde lá de cima, de Chaves até Faro, no Algarve, um percurso na Nacional 2 que eu gosto muito de fazer de moto", atira. "Nunca confundi as coisas e conseguimos juntar gente do Norte e do Sul na altura da Seleção. Para mim, foi com um orgulho muito grande, mas mesmo muito grande, que defendi exaustivamente Portugal, o nosso país", prossegue.
Sem "fome do treino" hóquei fica de lado, para já
"Dedicava-me, não a 100, mas a 200% ao hóquei em patins, deitava-me, dormia e acordava a pensar em hóquei. Acho que fui um bocado exagerado nessa parte, não via que há mais vida, mas agora vejo", refere Garrido. "Graças a Deus, passei por todos os escalões de formação. Eu comecei cedo, com 22 anos, na verdade, comecei no Académico, mas com 22 anos comecei a sério no FC Porto, passando por todos os escalões e sendo adjunto e/ou preparador físico da equipa sénior. Tive de me autoanalisar e estes dois últimos anos no Valongo já os fiz por uma amizade enorme por uma grande pessoa, o Miguel Vagaroso, porque eu perdi a fome. Perdi a fome do treino. Tenho de o admitir, não sinto falta do treino nem do hóquei em patins, claro que vejo um ou outro jogo e acompanho o meu filho, guarda-redes no FC Porto", prossegue com honestidade e brilho no olhar. "É que agora viajo, vou ver concertos, estou farto de ver concertos espetaculares, estou ainda mais com os meus filhos, tenho tempo para mim", justifica, sublinhando: "Admito que durante muitos anos achava que a vida era o hóquei em patins, eram as 24 horas do dia para aquilo e não havia mais vida, mas há".
Seja como for, Renato assegura que as portas da modalidade não estão fechadas. "Para treinar não tenho expectativa, como disse, estou sem fome. Mas pode ser que um dia volte a tê-la. Eu tinha um sonho como treinador que, creio, já não vou conseguir, que era ganhar uma Liga dos Campeões. Mas consegui o sonho dos sonhos, ser campeão do mundo, em Espanha, no Palau Blaugrana, tendo a Espanha a equipa que tinha. O que sinto é que, com a experiência que tive e tenho na modalidade, posso exercer um cargo de diretor técnico nacional, por exemplo. Numa federação ou até mesmo num clube, diretor técnico num clube. Se um dia alguém achar que eu sou a pessoa ideal, não vejo por que não".
A democracia e a liberdade do portismo
"Nunca escondi de ninguém e não é agora que o vou fazer", afirmou Renato Garrido. "Sempre fui portista, desde sempre. Aliás, lá em casa há liberdade e vivemos uma democracia, somos todos portistas", dá sequência o professor, garantindo que esse assumir de clube já lhe trouxe "alguns dissabores".
"O facto de ser do FC Porto foi-me trazendo um ou outro problema, eles ainda olham para nós daquela maneira... Mas não é por isso que sou mais ou menos profissional e, se calhar, quando defrontava o FC Porto, ainda queria mais ganhar. Também gostava do Salgueiros, o clube da minha freguesia, Paranhos, fiquei triste quando o "Vidal Pinheiro" foi abaixo. Agora, nasci portista, vou morrer portista e nunca o esconderei. Aliás, eu acho uma certa graça às pessoas que dizem que são do Belenenses, do Estrela da Amadora ou do Felgueiras, quando não são nada. Eu assumo o que sou, porque é de mim, sou assim", diz, perentório.
"E deixe-me dizer-lhe, na Seleção nunca houve problemas, escolhia os melhores, fossem de que clube fossem", lembra, continuando a vasculhar as recordações: "Quando recebi o convite da Seleção Nacional, lembro-me perfeitamente de ter falado com o Edu e não pensámos muito para aceitar, era um orgulho muito grande para a nossa carreira e sempre fui muito bem tratado".
E quando não houver professores?
Renato Garrido, que também trabalha no estúdio da irmã, em Matosinhos, como personal trainer, olha para a docência com apreensão. "A situação do ensino em Portugal preocupa-me. A classe está envelhecida. É uma classe muito capaz, muito preparada, mas envelhecida. Como já disse, tenho 52 anos e sou o professor mais jovem desta escola", comenta.
"Há aqui um vazio entre aqueles que se licenciaram, que vão dar aulas e que possam, depois, substituir esta malta mais antiga, que em pouco tempo se reformará. Preocupa-me a possibilidade de milhares de crianças que, nos próximos anos, venham a não ter professor", estima. "Essa possibilidade é algo que me incomoda. Estamos aqui, nesta escola da Maia, e as condições de ensino, de logística, são fantásticas. Mas vir a não ter professores... Como será o futuro destas crianças?", questiona-se.
Alguns servem-se do hóquei em patins
Já relativamente ao hóquei, é com outros olhos que Renato vê a situação. "Acho que está bem, fomos agora campeões da Europa de seleções, o Edo [Bosch] foi campeão do Mundo de clubes com o Sporting em San Juan, somos campeões de Europa em Sub-23, o nosso campeonato continua a ser o melhor do mundo, por isso é caso para dizer que o hóquei em patins em Portugal está bem", analisa.
Mas - há sempre um mas -, existe uma situação que desagrada sobremaneira o técnico campeão do mundo. "A única coisa que me custa são aqueles que ainda andam no hóquei a servir-se do hóquei, a servir-se da modalidade em vez de a servir", ataca. "Para bom entendedor, meia palavra basta: eles sabem quem são", dispara. "É a maior pena que eu tenho. De resto, a nível dos jogadores e treinadores, penso que, mesmo tendo a melhorar, está a bom nível", finaliza.
