Portugueses que fogem da Volta: os exemplos de João Almeida, Rui Costa e Guerreiro
Havendo um mundo de diferenças entre o ciclismo nacional e as equipas do World Tour, corredores como João Almeida, Rúben Guerreiro e Rui Costa optaram por emigrar muito cedo.
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Foi a O JOGO, numa das primeiras entrevistas da sua carreira, que João Almeida deixou bem expresso o espírito dos emigrantes do ciclismo. "Em Portugal é difícil crescer e ser um grande corredor. Não existem corridas de elevado nível internacional. Gosto da Volta, é uma corrida bonita, mas é pena não ter as melhores equipas", disse, em abril de 2018, o atual menino bonito do ciclismo português e maior esperança para um salto qualitativo eternamente adiado.
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País periférico, Portugal sofre com as exigências monetárias da União Ciclista Internacional, que têm criado um fosso casa vez maior entre as equipas nacionais e as do chamado World Tour, como a Deceuninck-Quick Step de Almeida.
O jovem faz parte de uma nova geração que seguiu as pisadas de Rui Costa e emigrou na fase final da sua formação, não chegando a alinhar na Volta a Portugal. "O Rui era do Benfica, que com muito orgulho o deixou correr o ano quase todo pela Seleção Nacional, saindo depois para a Movistar", recorda José Poeira, selecionador nacional, percebendo a ambição dos jovens: "Eles sabem que lá fora têm melhores calendários e, quanto mais cedo entrarem no mundo das grandes equipas, mais depressa se adaptam. O João Almeida e o Rúben Guerreiro ainda são novos, mas para eles cada corrida já é mais uma."
Os calendários com as melhores provas são, mais do que as condições de treino, aquilo que obriga um corredor com ambições a deixar Portugal, embora as diferenças orçamentais sejam avassaladoras. As nove equipas nacionais inscritas no escalão Continental - uma terceira divisão internacional - têm orçamentos entre os 200 e os 500 mil euros, enquanto uma formação do World Tour gasta de 10 milhões para cima, sendo os 20 milhões anuais uma verba comum numa equipa ganhadora como a belga Deceuninck-Quick Step e os 40 milhões da britânica Ineos um recorde que nunca parou de aumentar desde os anos em que a equipa se chamava Sky e começou a dominar a Volta a França.
"Para uma equipa nacional chegar às Grandes Voltas teria de custar uns seis milhões e apostar a vários anos. Mas, trabalhando como na Efapel, faria boa figura"
"Há muitas diferenças mas, e falando pela Efapel, em termos de trabalho, organização e inovação, não estamos assim tão distantes. Não somos um Real Madrid, mas dentro da nossa dimensão damos boas condições aos corredores e sabemos que fazemos muito sem precisar de um orçamento superior. Na Volta ao Algarve, quando nos colocamos ao lado de uma Trek, não temos vergonha", diz Rúben Pereira, diretor desportivo da equipa que mais luta tem dado à W52-FC Porto, caprichando sempre pela imagem irrepreensível e tendo até um camião-oficina comprado à Deceuninck.
A empresa de materiais elétricos de Américo Duarte faturou 42 milhões de euros no ano passado, 30% deles exportando para 50 países, mas não consegue sozinha chegar ao patamar mais alto. O mesmo se poderá dizer da W52 de Adriano Quintanilha, embora as 149 lojas de vestuário tenham permitido, há um ano, uma experiência no segundo escalão, o Pro Continental. "Não nos agradou e as exigências ainda iam ser maiores este ano. Acabamos por não prosseguir, como muitas equipas. Foi uma experiência, uma aventura, ficamos a saber como é aquele mundo. Mas um investimento elevado justifica-se podendo competir em Tour, Giro ou Vuelta, nas restantes corridas o retorno é difícil de obter", diz Quintanilha a O JOGO, apontando o maior problema: nem um investimento dois milhões, necessário para o patamar intermédio, garante o acesso às corridas importantes.
"Ir ao segundo escalão foi uma aventura. Um orçamento elevado só se justifica correndo Tour, Giro ou Vuelta"
"A UCI obriga a ter orçamentos exagerados. Porque quanto a ciclistas, Portugal tem-nos com valor para lutar a um nível mais alto. A W52-FC Porto possui corredores com qualidade de escalões superiores", destaca Quintanilha. Amaro Antunes, vencedor da última Volta, chegou do World Tour para os portistas e no escalão mais alto também já estiveram Ricardo Mestre, Gustavo Veloso e Raúl Alarcón. A dificuldade, para as equipas nacionais, é ter corridas onde essa qualidade se note.
"A Volta a Portugal está encaixada numa data complicada", diz José Poeira, sabendo que é pela via das Seleções Nacionais que os talentos dão o salto. "Brilhar em provas como a Taça das Nações revela qualidade. As grandes equipas têm agentes que só veem essas corridas. O João Almeida, que logo em cadete entrou nas seleções e mostrou capacidade, foi mais tarde sexto na Volta a França do Futuro, a prova que é uma espécie de barómetro. Tornou-se logo pretendido".
Longe da centena de pessoas da Ineos ou das 81 da Deceuninck, que como todas as equipas World Tour conseguem estar em três provas em simultâneo, multiplicam os estágios em altitude e preparam os corredores com apoio de médicos, nutricionistas, psicólogos e fisioterapeutas, o ciclismo português sonha com esse salto. "É possível Portugal ter uma equipa no World Tour, era possível isso acontecer num médio prazo, mas por enquanto esse projeto não existe", diz Rúben Pereira, com Poeira a deixar outra ideia: "Dinheiro há, mas nunca esteve virado para o ciclismo. Nunca apareceu uma multinacional a fazer uma equipa de outra dimensão. Pode ser que, com os resultados destes jovens, isso venha a acontecer. O ciclismo foi muito falado, algumas empresas podem olhá-lo como nunca o tinham feito."
JOÃO ALMEIDA, O VOLTISTA QUE AINDA VAI CRESCER
"O ciclismo português está numa frase de crescimento, apesar do travão colocado pela pandemia. Ninguém ficou indiferente ao que aconteceu no Giro, mas falta traduzir isso na captação de novos patrocinadores", diz Rúben Pereira, não fugindo ao tema inevitável dentro do ciclismo: os desempenhos de João Almeida e Rúben Guerreiro, que capitalizados podem gerar uma era de maior desafogo.
Até porque, diz um selecionador que os conhece bem, podemos esperar ainda mais deles. "O Almeida deu cedo sinais de ser um voltista. A Volta a França do Futuro tem 10 dias, os últimos quatro com alta montanha, e tanto ele como Rúben foi nesses dias que sobressaíram", diz José Poeira sobre o lançamento dos jovens, que passaram pela equipa de referência mundial em sub-23, a americana Axeon.
Jovem de A dos Francos domina todas as conversas e selecionador espera vê-lo evoluir mais
"O João, dois anos depois, já está a provar que é bom. Ainda irá ganhar consistência, evoluir na alta montanha e ter mais experiência. Mas ele é inteligente, um bom líder e revela qualidades de vencedor, outro fator importante. Mostrou à equipa que pode contar com ele. Assumiu a liderança, andou muito em todas as etapas - e por vezes aquelas a rolar tornam-se nas mais difíceis - e provou, com os contrarrelógios que fez, ter boa capacidade de recuperação", sintetiza sobre o quarto classificado da Volta a Itália.