ARGUMENTO ORIGINAL - Patinagem Artística | O rapaz do campo, a Cidade dos Campeões e o feito que todos tentavam há anos.
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4-vezes-4. Quatro piruetas no ar. Aterrando no pé de chamada - sem alguma vez pousar o outro pé no chão -, o russo Alexander Fadeev vinha tentando a proeza desde 1983, sempre sem sucesso. O checoslovaco Josef Sabovcik tentara-a no Mundial de 1986, mas desequilibrara-se no final e, apesar de ter erguido de imediato os braços, a ver se fazia vingar a concretização, os juízes haviam-lha negado. O norte-americano Brian Boitano tentara-a em 1987 e caíra; tornara a tentá-la naquela mesma semana, nas eliminatórias do Campeonato do Mundo de Budapeste, realizado em março de 1988, e voltara a falhar. E, de repente, o Kurt Bowning conseguiu-o. Foi logo no primeiro salto do seu programa longo do Campeonato, e não só lhe valeu o primeiro dos seus quatro títulos mundiais, mas mudou a patinagem artística para sempre.
Browning ganhou o Lou Marsh Trophy, o Lionel Conacher Award e o Gustav Lussi Award.
Dava um filme. Menos mensageiro dos abismos da natureza humana do que "Eu, Tonya", o premiado filme de Craig Gillespie sobre a patinadora Tonya Harding (nomeado para os Óscares de 2018), mas certamente mais exemplar sobre a capacidade de superação humana.
Kurt Browning tinha 12 anos quando saiu pela primeira vez da cidade de Caroline, situada na zona rural da província de Alberta, para disputar uma competição de patinagem artística. Era um desconhecido, apenas mais um rapaz do campo a praticar exercício com recurso àquilo que o Canadá mais tinha - o gelo -, pelo que de início ninguém lhe ligou muito. Mas, então, aconteceu uma coisa extraordinária: esqueceu-se da coreografia. Toda a gente o percebeu. E foi aí que o pequeno Kurt deu a sua primeira prova de resiliência: improvisou durante todos aqueles 90 segundos, tentando defender a sua patinagem contra miúdos com programas decorados na perfeição, e acabou no terceiro lugar.
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Era um garoto excecional, reconheceram logo os observadores mais atentos. Tinha uma habilidade natural para os saltos, um jogo de pés precioso e uma ginga artística extraordinária. Um talento e, como se via, uma personalidade extremamente competitiva. Bem podia chegar longe, se fosse treinado pelas pessoas certas. De modo que, nos três anos seguintes, os responsáveis técnicos do Royal Glenora Club, em Edmonton (Alberta), seguiram a sua evolução. E quando completou 15 anos, foram buscá-lo, para treinar e estudar na cidade grande - a Cidade dos Campeões, como já então se lhe chamava -, em regime de internato. Um delírio para o jovem rapaz, que ademais podia confraternizar com os atletas de equipas de hóquei e esqui que desde sempre idolatrara.
Foi eleito Patinador do Ano pela American Skating e agraciado com a Ordem do Canadá.
Resultado: ao fim de um ano apenas, em 1983, Kurt Browning foi campeão nacional de juvenis (ou "novices"). Dois anos depois, repetiu a proeza nos juniores. Promovido aos seniores, começou por patinar na sombra do multicampeão Brian Orser, mas não tardou a sobrepor-se-lhe. Foi 15.º no Mundial de 1986 e melhorou para sexto no de 1987. A partir de 1988, ganhou quase tudo. Quatro vezes campeão do mundo (1988, 1989, 1990 e 1992), venceu outras quatro o campeonato nacional canadiano, três o Skate Canada International e (uma vez cada um) o Grand Prix de Paris, a Nations Cups e os Jogos da Boa Vontade. Poucas figuras na história da modalidade, homens e mulheres, lhe fazem sombra rival. Única mágoa: nunca ter ganho os Jogos Olímpicos - nem sequer uma medalha -, apesar de haver competido em 1987, 1991 e 1993.
Mas o feito, o momento mágico que lhe garantiu para sempre um lugar na história, foi aquele salto a 25 de março de 1988. Os Jogos Olímpicos de Inverno haviam sido há apenas três semanas (Calgary 1988), e Brian Boitano, que também já fora campeão do mundo em 1986, chegava à Hungria de medalha de ouro ao peito. Mas o mundo continuava à espera de ver o quadruple toeloop, ou quádrupla-pirueta lateral. A demanda em torno dele era de tal ordem que o salto já ganhara, inclusive, uma alcunha: The Quad. Até um verbo havia: to quad - um patinador que o tentasse estava a ver se conseguia, finalmente, «quadruplar». Até que chegou a noite do programa longo. Boitano já falhara nas eliminatórias, mas talvez arriscasse de novo. Kurt Browning, "aquele miúdo incrível do Canadá", ia arriscar de certeza: ele próprio o anunciara antecipadamente.
Está no Hall of Fame do Desporto Canadiano desde 1994 e no da Patinagem desde 2006.
E fê-lo logo no primeiro salto da coreografia, quando ainda estava fresco. Patinou um pouco em volta, em prelúdios maneiristas sem demasiada exigência atlética - e saltou. Quatro voltas no ar, com as respirações do pavilhão de Budapeste suspensas. Quando aterrou, ainda se desequilibrou um pouco, mas conseguiu evitar ir com o pé contrário ao chão, resolvendo o deslize com uma saída elegante. E, não contente com o feito, continuou a atacar todos os grandes saltos alguma vez conseguidos até ali pelos maiores patinadores de sempre: toe loops, salchows, eulers, flips, lutzs, axels - versões simples e compostas deles, incluindo um triplo-axel logo a seguir ao The Quad, que deixou a assistência boquiaberta com o seu inconformismo.
Kurt Browning veio a deixar a competição em 1994, frustrado com os fracassos olímpicos, mas permanece até hoje uma das maiores figuras da patinagem. Comentador de televisão e coreógrafo de vários supercampeões, ainda patina em sessões de exibição, e nunca falta quem diga que, aos 52 anos, as suas capacidades - artísticas e até atléticas - ainda suplantam as de muitos jovens. É casado com uma das mulheres mais cobiçadas do Canadá: Sonia Rodriguez, antiga prima bailarina do National Ballet of Canada.