#desportoemtempodeguerra >> Depois de 25 anos a combater os russos, vieram os talibãs e o estádio Ghazi, repartido, às sextas-feiras entre o futebol e a carnificina. Entretanto, nos campos de refugiados do Paquistão, nascia uma genial geração de críquete
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Num curto vídeo, filmado por um telemóvel, vemos um grupo de combatentes talibãs em animada discordância. Têm as barbas como manda a etiqueta e cada um a sua kalashnikov pendurada do ombro esquerdo, mas não percebemos o que dizem, porque estão a falar pashtun. Só no final nos é explicado que debatiam as convocatórias da seleção afegã de críquete e não qual deles será o próximo bombista suicida. Poucas guerras duraram tanto e foram tão violentas como as do Afeganistão. Entre a invasão russa e o conflito civil que veio a seguir contaram-se 30 anos de torturas, proibições e perseguições que, apesar do esforço, não conseguiram matar o desporto.
Entre a invasão russa e o conflito civil que veio a seguir contaram-se 30 anos de torturas, proibições e perseguições que, apesar do esforço, não conseguiram matar o desporto.
O pior período, mas também o mais rico em informação, foi claramente o dos talibãs, estudantes de teologia, islamitas fanatizados, que comandaram o país entre 1996 e 2001. Por estranho que pareça, o primeiro gesto que tiveram para com o desporto seria visto como bastante decente pela plateia ocidental: banir dois dos desportos seculares da tradição afegã, a luta de cães e o "buzkashi", que consiste numa espécie de batalha a cavalo jogada com a carcaça de uma cabra. O futebol e o críquete, outros dos favoritos, foram sendo progressivamente tolerados até chegarmos à tradição das sextas-feiras, em Cabul.
Todas as semanas, depois de cumpridos os ritos religiosos nas mesquitas, os cidadãos da capital dirigem-se ao estádio Ghazi, construído pelo rei Amanullah Kahn, em 1923. Ghazi significa herói. Lá dentro, ao início da tarde, sentam-se muitos milhares de afegãos (as crónicas dizem 20 mil, num estádio em que, por esses dias, cabiam 50 mil) para um espetáculo em duas partes. A segunda são jogos de futebol, da liga profissional de Cabul. A primeira, acompanhada por um narrador no sistema de som do recinto, é o cumprimento da "sharia", ou lei islâmica. Podem ser apedrejamentos, fuzilamentos, enforcamentos ou mutilações, todos eles recebidos com entusiasmo pelo público, às vezes com o brinde de uma volta olímpica do cadáver ou do mutilado numa camioneta de caixa aberta.
"Depois do aquecimento, quis afastar um barril que alguém tinha colocado no centro do relvado. Quando se aproximou percebeu que estavam lá dentro seis mãos decepadas.
Mohammad Isaq, um dos futebolistas em destaque nesses tempos, contou à Rádio Free Europe que, um dia, quando se preparavam para treinar remates, depois do aquecimento, quis afastar um barril que alguém tinha colocado no centro do relvado. Quando se aproximou percebeu que estavam lá dentro seis mãos decepadas. Mas em geral, o principal inconveniente para os futebolistas era terem de cobrir com areia as várias poças de sangue numa determinada zona do campo. Isaq conta que as equipas eram financiadas por comandantes talibãs, que depois apostavam armas, carros e casas nos resultados. O futebol sobreviveu à conta desse vício altamente punível pelas regras da altura. Um ano depois do derrube dos talibãs, a seleção fazia o seu primeiro jogo internacional desde a década de 1980 e dois anos depois o estádio do "Herói" Amanullah Kahn recebia o primeiro jogo realizado no Afeganistão em três décadas. Ainda assim (velhos hábitos), em 2005 uma equipa de futebol teve de cancelar ao soco um torneio de críquete que era suposto realizar-se no campo que ela pretendia usar.
O críquete é o verdadeiro conto sentimental do desporto afegão. À partida, tinha uma grande vantagem sobre o futebol, aos olhos do clero mais fundamentalista: os jogadores vestem calças, ou seja, não mostram as pernas, e isso para os fanáticos é um fator decisivo. Em 2019, o mullah Badruddin, um dos comandantes da resistência talibã, contava à Agência Reuters que os "mujahedin" se juntam sempre à volta do rádio quando joga a seleção, entretanto guindada ao grupo das doze melhores do mundo à custa do mais improvável dos recursos. Foi dos campos de refugiados do Paquistão que veio a primeira grande geração de talentos afegãos, a maioria deles nascidos já no exílio, nos anos 1980 e 90, e sob a influência da loucura paquistanesa pelo jogo. O críquete era a vida possível, às vezes mesmo sem sair das barracas de lama onde as famílias viviam. Bastava uma marca na parede, um pau e um pedaço de plástico amassado para se parecer o mais possível com uma bola, conta-nos uma reportagem da CNN. O Clube Afegão de Críquete nasceu num campo de refugiados nos limites da cidade de Peshawar e já então os fundadores atravessavam a fronteira para evangelizar os compatriotas possíveis.
Carros blindados, perímetros de segurança, escoltas do exército, frequentes pequenos-almoços com o presidente; valeu tudo pelo amor ao críquete
Mas também o críquete, mesmo vingando longe do estádio Ghazi e mesmo depois de atingir o Olimpo internacional, teve o seu sangue para esconder da vista. Um bombista suicida, em 2017, fez-se rebentar à entrada de um campo onde se fazia uma partida do campeonato afegão, na altura muito revolucionado por treinadores e veteranos estrangeiros, que imediatamente rescindiram os contratos e debandaram. O treinador inglês Adam Hollioak foi dos poucos que tomaram a decisão de ficar, para eterna gratidão dos locais. Carros blindados, perímetros de segurança, escoltas do exército, frequentes pequenos-almoços com o presidente; valeu tudo pelo amor ao críquete a partir de então, ao ponto de haver especialistas na política da região convencidos de que a modalidade (tão obcecada pela boa educação e fair-play que o próprio râguebi sai envergonhado) fez mais pela democracia do que os soldados norte-americanos ou as missões da ONU. Quem sabe?