Villas-Boas, a cadeira de sonho e o Chelsea: "Ensinou-me a gerir conflitos"
André Villas-Boas é o protagonista de uma extensa entrevista a O JOGO que aborda o passado, o presente e até do futuro
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O Chelsea já tinha batido à porta em janeiro, mas só conseguiu o que queria no verão. Abramovich, às voltas na justiça, só se via por Skype.
Foi uma decisão difícil deixar a "cadeira de sonho" ou na altura a proposta do Chelsea era irrecusável?
-Não foi uma proposta irrecusável. Foram uma série de contratempos que vivemos entre fevereiro e abril. Nessa fase, houve vários clubes que demonstraram interesse e houve uma fuga do coração para a razão, digamos assim, em termos de carreira desportiva. O Chelsea ligou-me pela primeira vez em janeiro. Queriam que eu fosse para lá imediatamente e eu respondi que isso não fazia sentido nenhum.
A mudança para Londres não apanhou a SAD do FC Porto de supresa, garante André, que teve uma passagem por Stamford Bridge que se traduziu num processo de aprendizagem muito valorizado
Eles tinham sido eliminados da Taça de Inglaterra, em Stamford Bridge, nos penáltis, e passados alguns dias recebi uma chamada do Abramovich. Mas depois, entre fevereiro e abril aconteceram uma série de coisas que me levaram a refletir na carreira e a tomar a decisão de sair. Todos esses passos foram comunicados à Direção do FC Porto, ao contrário do que transpareceu, dando a imagem de um homem em fuga em cima da data do regresso aos treinos. Foi um momento difícil, de muitas dúvidas pessoais, mas acabou por se concretizar a separação, a troco de uma quantia exorbitante [n.d.r.: o Chelsea pagou 15 milhões de euros ao FC Porto a pronto], mas que não atenua a dor que é deixar o clube do coração.
Foi um ano ingrato para agarrar o projeto do Chelsea, pelo menos em termos de investimento. Sente que lhe venderam gato por lebre?
-Mais ou menos. Houve uma série de decisões que foram duras. Falhámos muitos jogadores. Falhámos o Álvaro Pereira por 500 mil euros do mecanismo de solidariedade, depois de termos chegado a acordo para a transferência por 15 milhões de euros. Depois, o Modric era para ir para o Chelsea e não foi. Entretanto, o João Moutinho era a alternativa ao Álvaro Pereira, mas também não foi e acabámos por levar o Raúl Meireles. Fizemos regressar o Daniel Sturridge por empréstimo, fechámos o Juan Mata por 45 milhões e conseguimos o Lukaku e Oriol por nada, pelo menos relativamente àquilo que eram as transferências habituais do Chelsea: cerca de seis milhões cada um. E, curiosamente, essa equipa low-cost do Chelsea, comparada com os 220 milhões gastos no ano seguinte à minha saída, acabou por vencer a Liga dos Campeões.
"Saí do FC Porto com muito poucas derrotas e ali, no Chelsea, senti o sabor da derrota e o desafio de voltar a triunfar"
Aliás, as coisas nem sequer começaram mal...
-Pelo contrário. Começámos muito bem o campeonato, com uma dinâmica muito boa, jogávamos muito bem. Tínhamos perdido em Old Trafford, mas jogando um bom futebol, e chegámos a outubro todos maravilhados uns com os outros. O problema é que depois tivemos três derrotas seguidas, que deixaram marcas profundas. A primeira foi com o Queen"s Park Rangers, com duas expulsões: John Terry e Drogba. E depois perdemos em casa com o Arsenal por 5-3 quando tínhamos o jogo empatado 3-3 a dois minutos do fim. A outra foi com o Liverpool para a Taça da Liga. Esse momento provocou o esvaziamento da crença junto dos jogadores no processo e na mudança de filosofia. Para mim foi uma aprendizagem enorme. Foi o clube onde aprendi mais a ser líder e a ser treinador e a gerir conflitos. De qualquer forma, essa irregularidade, a alternância entre vitória e derrota, é o pior que pode acontecer a uma equipa.
Sente que foi uma aposta falhada?
-Sobretudo, foi um processo de aprendizagem de que eu precisava. Saí do FC Porto com muito poucas derrotas e ali senti o sabor da derrota e o desafio de voltar a triunfar. Não gosto de vangloriar-me das coisas, mas nunca tive problema em falar dos meus fracassos. E isso acho que me distingue de muitos outros que passaram pelo Chelsea, que fracassaram, mas apagaram esses momentos das respetivas carreiras. Eu continuo a falar abertamente desses momentos. Aliás, acho que a minha carreira se marca precisamente por momentos como esse: cair, voltar a levantar.
"Todos os passos foram comunicados à Direção, ao contrário do que transpareceu: a imagem do homem em fuga em cima do regresso aos treinos"
Também serviu de aprendizagem para lidar com os dirigentes que não estão a cem por cento com o treinador?
-A esse nível, Inglaterra é completamente diferente, e não apenas no caso do Abramovich. Nessa altura, ele estava a lidar com um caso judicial muito importante para a vida profissional e esteve completamente ausente. Ia muito pouco ao clube, falava muito pouco comigo. As conversas que tínhamos era muito curtas, via Skype e a presença física era praticamente inexistente. Mas as lideranças em Inglaterra estão marcadas por isso mesmo. Por propriedades que apostam num grupo de competências, sejam elas CEO, Diretor Desportivo e treinador e quando apostam nessas competências entregam o trabalho. O problema é que todas as empresas, e os clubes por maioria de razão, precisam de uma referência superior. Há alturas específicas no processo desportivo em que o treinador precisa de saber o que quem manda quer. Aprendi a viver com isso em Inglaterra e, aliás, passou-se exatamente o mesmo com o Tottenham.