Sociedades Anónimas de Futebol: uma revolução no Brasil com 25 anos de atraso
TEMA - Botafogo, Cruzeiro e Vasco da Gama foram os primeiros a seguir os passos que remontam à criação das SAD em Portugal e os investidores foram saudados como salvadores da pátria de um trio de gigantes caído em desgraça. Flamengo e Palmeiras são, para já, os grandes resistentes à mudança de modelo.
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Em pleno processo de transformação nos relvados, à boleia da "redescoberta" portuguesa iniciada por Jorge Jesus e Abel Ferreira e à qual Paulo Sousa, Vítor Pereira e Luís Castro querem dar continuidade, o futebol brasileiro prepara-se para uma nova revolução com a entrada em cena das Sociedades Anónimas de Futebol (SAF).
Considerado como mais uma tentativa para reduzir o fosso dos clubes locais em relação ao que se faz de melhor na Europa, o plano remete para o final da década de 1990, quando, em Portugal, o Governo aprovou o Decreto-Lei que estabeleceu o Regime Jurídico das Sociedades Anónimas Desportivas (SAD). Os 25 anos de experiência acumulada no nosso país, bem como outros projetos implementados em Espanha e Alemanha, entre outros, motivaram o presidente Jair Bolsonaro a aprovar uma lei que tem como grande objetivo quebrar amarras com o modelo associativo, considerado obsoleto e motivador de disputas internas e conflitos de interesses que têm afetado negativamente a gestão da grande maioria dos clubes. Nos bastidores crê-se que a mudança de paradigma vai trazer mais governança, transparência e capacidade de planeamento a longo prazo.
Em conversa com O JOGO, Irlan Simões, jornalista e autor do livro "Clube Empresa: abordagens críticas às sociedades anónimas no futebol", aponta a possibilidade de renegociação e parcelamento de dívidas milionárias, contraídas em salários acima das possibilidades dos clubes, como um dos principais fatores para a mudança de mentalidades. "O futebol no Brasil já passou por outros processos de incentivo à transformação em empresa. Tivemos a Lei Zico, em 1995, e logo depois a Lei Pelé. Usaram nomes de jogadores famosos para tentarem aumentar o interesse popular no debate, mas os poucos clubes que tentaram transformarem-se em SAF não foram bem sucedidos. Daí veio uma perspetiva negativa. Esta nova lei tem mecanismos que tornam este processo bastante benéfico, especialmente a nível tributário. Mas, mais do que isso, vai ajudar muitos clubes a organizarem e a parcelarem as dívidas acentuadas por salários muito onerosos. Isto porque, num primeiro momento, a SAF não será responsabilizada pela dívida, que continuará vinculada aos clubes. Desta forma haverá mais tempo para arrecadar receitas e resolver o problema", frisa.
Até ao momento são três os clubes que já avançaram para o processo de transformação em SAF. A atravessarem graves crises a nível desportivo e financeiro, Botafogo, Cruzeiro e Vasco da Gama - cujas respetivas dívidas se situam entre os 700 e os 1000 milhões de reais (130 e 180 milhões de euros) - aspiram a regressar à ribalta do futebol brasileiro à boleia dos milhões prometidos pelos novos investidores. O caso do alvinegro carioca, cuja maioria da SAF foi adquirida pelo empresário norte-americano John Textor, que tentou comprar 25% da SAD do Benfica sem sucesso, é paradigmático, com as promessas de reforços em catadupa no regresso à Série A a alimentarem uma onda de euforia num clube que vive das glórias dos tempos de Mané Garrincha e de um único título brasileiro (1995). "Esses três clubes estão num patamar financeiro e desportivo baixo há muitos anos. Existe uma ausência de expetativas e esperanças num momento em que os principais rivais [Flamengo e Atlético Mineiro] estão muito bem. É fácil perceber o porquê de receberem com euforia o investidor munido de dólares ou euros. Só assim podem aspirar a uma época em que a Justiça não bloqueie contas ou penhore bens no decorrer dos campeonatos", salienta Irlan Simões, particularizando o caso do Cruzeiro, em que 90% das ações da SAF são detidas por um consórcio liderado por Ronaldo "Fenómeno": "Tratava-se de uma associação muito fechada, onde um sócio só podia entrar praticamente por convite e tinha de votar num conselho que, posteriormente, elegia uma direção. Parecia uma loja maçónica. Por isso, o adepto não está nada incomodado com esta mudança, até porque sente que fora de um sistema oligarca tem mais hipótese de ver o clube regressar aos bons e velhos tempos."
Estatuto dita próximos passos
Os emblemas mais endividados do Brasil parecem, naturalmente, mais inclinados a aderir à ideia das SAF, mas existem "aldeias" que parecem irredutíveis na intenção de manter o status quo. Dono de uma situação financeira invejável fruto de uma reestruturação que demorou vários anos, o Flamengo de Paulo Sousa não vê no horizonte a necessidade de uma mudança e, através da Direção, já manifestou publicamente que só avançará para a criação de uma SAF em caso desta ser de caráter obrigatório para competir. Vencedor das últimas duas Taças Libertadores, ambas sob o comando de Abel Ferreira, o Palmeiras está, para já, no mesmo comprimento de onda que o rival carioca. Outros dos clubes que se pronunciou avesso à ideia foi o Corinthians, de Vítor Pereira.
Um outro pelotão de clubes que disputam a Série A, onde estão integrados Athletico Paranaense, Coritiba e América Mineiro, já receberam luz verde dos sócios em sede de assembleia geral para abrirem os respetivos processos de criação das suas SAF, com a ressalva do clube manter a maioria do capital. Clubes de divisões inferiores como a Chapecoense, o Botafogo de Ribeirão Preto, o Noroeste, o Gama, o Joinville e o Paulista também querem surfar esta onda.
Caso particular é o do RB Bragantino, em que a relação do clube e da marca de bebidas energéticas passa por uma parceria comercial. No futuro próximo é expectável que se proceda à transformação em SAF e, aí sim, será oficializada a sua inclusão no conglomerado que detém o Salzburgo, o Leipzig e outros clubes espalhados pelo planeta.
City Group quer estender os tentáculos
Vencedor do campeonato, da Taça e da Supertaça do Brasil, o Atlético Mineiro reinou internamente e a perspetiva de criar uma SAF, assumida pelo presidente Sérgio Coelho, tem aguçado o apetite de grandes investidores. De acordo com informação avançada pelo jornalista Rodrigo Capello, do portal Globoesporte, o City Group quer estender os seus tentáculos ao Brasil e terá mostrado interesse em adquirir 51% da futura SAF do Galo por um valor a rondar os 1000 milhões de reais (180 milhões de euros), que estará abaixo do pretendido pela Direção do emblema mineiro. "Posso dizer que o potencial acordo entre o Atlético Mineiro e o City Group tem rivalizado com a guerra na Ucrânia nos noticiários brasileiros", começa por dizer Irlan Simões, acrescentando que o campeão brasileiro não foi o único clube sondado pela holding de Abu-Dhabi: "Já sondaram cinco clubes brasileiros, sendo que um deles é o Bahia. São clubes de contextos e ambientes muito diferentes, portanto parece-me que estão várias opções em aberto."
Criado em 2013 pelo xeque Mansour bin Zayed, que detém 78% do seu capital através do Abu-Dhabi United Group, o City Football Group tem o Manchester City como grande bandeira. Além do clube onde jogam Rúben Dias, João Cancelo e Bernardo Silva, a holding controla outros nove clubes espalhados pelo mundo: New York City (Estados Unidos da América), Melbourne City (Austrália), Yokohama Marinos (Japão), Montevideo City Torque (Uruguai), Girona (Espanha), Sichuan Jiuniu (China), Mumbai City (Índia), Lommel (Bélgica) e Troyes (França). O objetivo do City Group passa pelo desenvolvimento de jogadores, expansão da marca, colaboração entre clubes a nível de propeção e intercâmbio de atletas e desenvolvimento do futebol feminino e dos e-sports. Curiosamente, em 2020/2021, o grupo teve equipas campeãs em quatro continentes: Manchester City, Melbourne City, Mumbai City e New York City.