O segundo clube mais antigo do mundo desapareceu três vezes e... ainda vive
INFIÉIS DEFUNTOS - Sabia que o mui nobre e inglês Hallam FC, fundado em 1860, é o segundo clube mais antigo do mundo e ganhou o primeiro troféu de sempre em futebol? Que morreu três vezes, mas ressuscitou sempre? Que ainda anda aí feito amador, mas sempre igual a si mesmo? O JOGO descobriu mais um infiel defunto. E tem quase três séculos de história...
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Muitos sabem que o Sheffield FC é considerado o mais antigo clube de futebol do mundo e há que não o confundir com os mais célebres United e Wednesday. Poucos sabem que o segundo é nada menos que o desconhecido, sofrido, mas nem por isso menos célebre Hallam FC e esta história é dele que fala. Das suas várias vidas, da sua colorida e pioneira existência.
A Youdan Cup passou a ser menina dos olhos do Hallam, mas o troféu perdeu-se mais tarde e só foi recuperado
A disputa há muito que acabou: o Sheffield FC é reconhecido como a mais antiga agremiação do "association football", fundado em 1857 e o Hallam surgiu três anos depois - o Notts County, criado em 1862, é considerado pelos historiadores como o mais antigo clube de futebol profissional, um termo ainda muito pouco rígido para a altura. Se se quisesse chatear muito, o Hallam até poderia ser todos o mais remoto, assim adotasse a criação do Hallam Cricket Club em 1804, pois foi daí, 58 anos depois, em Sandygate Road - ainda hoje a casa dos Countrymen -, que se formou uma equipa de cavalheiros com a ideia, de pousarem os "bats" e o "wickets" do críquete para passarem a jogar futebol.
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Entretanto, o Sheffield FC já andava à procura de adversário. Tinham jogado duas vezes contra um conjunto "ad hoc" da guarnição do 58º regimento do exército britânico que estava estacionada nas cercanias de Hillsborough (onde hoje manda o Sheffield Wednesday) e queria divertir-se a pontapear o couro.
Foi, portanto, na região inglesa de South Yorkshire que o futebol começou a conhecer os primeiros traços, até que chegou o Boxing Day de 1860. Era uma quarta-feira. Eram 16 para cada lado. Os 16 do Sheffield FC foram a Sandygate enfrentar os 16 do Hallam e Stumperlowe. Nota importante:
Stumperlowe era uma aldeia que ficava a dois quilómetros de Sandygate e emprestou alguns jogadores ao Hallam, que daí por diante ficaria conhecido sempre e só por Hallam FC. O Sheffield Daily Telegraph reportou a espécie de "match", ainda a pedir ordem e regras.
"O jogo foi disputado com espírito, apesar do tempo severo que se fizera sentir nos dias anteriores, evitando que os muitos espectadores se aborrecessem. Os "sheffielders" apresentaram-se de escarlate e branco, ao passo que o Hallam se equipou de azul. Seria injusto eleger um só jogador como melhor em campo, uma vez que todos os cavalheiros se comportaram bem. Sem acidentes, o jogo Disputou-se com espírito amigável e quando a escuridão se abateu sobre a cena de jogo, o Sheffield contava dois golos a seu favor contra nenhum e foi para casa satisfeito com a vitória."
Esta é, senão a primeira, seguramente das primeiras crónicas que se conhecem publicadas de um jogo de futebol. Ou quase...
O que se sabe, e é reconhecido pelo Guinness, é que a primeira competição de futebol chamou-se Youdan Cup, disputou-se a eliminar entre 12 equipas e foi ganha pelo Hallam em 1867 - a prova antecedeu em quatro anos a FA Cup, mais simplesmente a Taça de Inglaterra. Jogou-se pelas Regras de Sheffield, um livro de códigos de futebol aceites entre 1858 e 1877 - introduziu as figuras do guarda-redes, do avançado centro, da cobrança de cantos e de livres a castigar faltas. Já com mais equipas formadas, o Hallam bateu o Norwich e levantou o primeiro troféu oficial que se conhece no desporto-rei.
Integrado em ligas regionais, o Hallam conseguiu deixar a sua marca na região de Sheffield
A Youdan Cup passou a ser menina dos olhos do Hallam, mas o troféu perdeu-se mais tarde e só foi recuperado... em 1997, quando um antiquário escocês vendeu o troféu de volta ao clube a troco de duas mil libras.
Amadores até aos ossos, os countrymen rejeitaram por completo o profissionalismo que se foi introduzindo no futebol do final do século XIX para escândalo dos puritanos. O Hallam sofreu horrores em termos de capacidade competitiva e "morreu a sua primeira morte" em 1886 por razões nunca totalmente esclarecidas - reemergiu com as mesmas cores, símbolo e designação um ano depois.
Integrado em ligas regionais, o Hallam conseguiu deixar a sua marca na região de Sheffield, mais precisamente na Hatchard League, que venceu em 1903. Relegados para a ala amadora por opção própria, os countrymen não cessaram a atividade quando deflagrou a I Guerra Mundial, mas não resistiram ao arrastamento do conflito, tornando a fechar portas em 1917, para só as reabrir dois anos depois, após o fim das hostilidades.
A equipa inscreveu-se então na Sheffield Amateur League, mas o pior chegou em 1932: o dono dos terrenos de Sandygate começou a arrendar o campo a outras equipas e o Hallam, sem fundos, ficou sem casa, depois sem equipa e a seguir sem razão de mais ser. Era o terceiro falecimento do Hallam. Durou 15 anos.
Novamente habilitado para jogar em Sandygate, o Hallam regressou ao mundo dos vivos revigorado: em 1947 integrou a reformada Hatchard League e logo a venceu; dois anos depois ganhou a Sheffield Association League; arrebatou a Sheffied Senior Cup de 1950 e passou a entusiasmar de tal forma as gentes locais que a equipa dos countrymen passou a ter de jogar em Hillsborough para acomodar as pequenas multidões que gerava.
O Hallam passou depois a disputar a Yorkshire League, nunca almejou voos maiores e hoje compete numa liga semi-profissional, a Northern Counties East League. É feliz, está de bem com a sua história e continua a jogar em Sandygate Road. Quase três séculos e três mortes depois.