Pat Nevin, antigo craque do Chelsea e atual comentador da BBC vai estar atento a um jogo onde cada treinador é seu amigo. E fala da essência dos adeptos escoceses
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O Escócia-Portugal do Hampden Park será um jogo especial para Roberto Martínez, que, enquanto médio de 28 anos, passou pelo Motherwell na época 2001/02, encontrando Pat Nevin, lenda escocesa, hoje com 61 anos, que foi craque da seleção, presente no Europeu de 1992, com carreira reconhecida em clubes como Chelsea, Everton e Tranmere Rovers.
E falar com Nevin nunca será apenas sobre futebol; é sobre cultura, pensamento e harmonia na sociedade, de um jogador que escrevia críticas musicais para o NME [n.d.r. conceituada revista britânica de música] e convivia com John Peel. Chamado de “weirdo”, pálido e com penteado “new wave”, era muito mais associado à aparência de um fã de Joy Division, denunciando reflexões mais íntimas e uma natureza artística, que o fazia acompanhar ballet, teatro e concertos alternativos. Na sua autobiografia, o antigo extremo é perfeito a definir-se como “o jogador acidental”. Pat Nevin, brilhante jogador, extremo desconcertante no Chelsea e Everton, foi resultado nas suas afinidades com a agitação musical dos oitentas, insaciável a cada álbum que estalava ou corrente que se abria. Estava sedento de companhias auditivas para dias mais cinzentos ou radiosos, numa Londres que era uma loucura que assoberbava um miúdo.
Mas também se fala de futebol com Nevin, comentador da BBC e figura muita ligada à atualidade do Chelsea. Este filho de Glasgow, fã do Celtic, por quem nunca jogou, está invadido de sensações, no mínimo, curiosas. “A nossa emoção é enorme porque Portugal é uma grande equipa, cheia de homens de classe mundial. Os escoceses adoram jogadores habilidosos, não importa por quem jogam, mesmo quando são nossos rivais. O futebol é lindo, não vale a pena pensar em tentar enganar, simplesmente vamos admirá-los e aplaudi-los”, confessa, expondo um extraordinário exemplo. “O Modric jogou contra a Escócia em Glasgow e destruiu-nos com o seu brilhantismo. Muitos adeptos escoceses esperaram por ele fora do campo para o ovacionar. Portugal tem imensos jogadores desse tipo, que podem ter o mesmo efeito nos nossos adeptos”, relata Nevin, com a paixão escocesa firme no estádio mas um olhar dividido aos dois bancos. “Os treinadores são meus amigos e tenho de avaliá-los de forma muito empolgante. Steve Clarke foi meu colega no Chelsea e na seleção, enquanto Martínez trabalhou comigo quando veio jogar, mais tarde, para o Motherwell. Eu era jogador, seu colega, e chefe executivo, seu superior”, precisa, definindo eloquentemente o espanhol que agarrou os destinos de Portugal. “Acho que é das pessoas mais adoráveis que pude conhecer no futebol. Chamo-lhe Robbie, um técnico extremamente talentoso e sábio. O nosso encontro, olhando às funções que tínhamos, geraram uma combinação invulgar. Eu era seu superior, mas só o via como colega e, mais do que tudo, um honroso amigo. Desejo-lhe o maior sucesso com Portugal, que vença sempre depois de defrontar a Escócia”, graceja.
Para o escocês, Martínez já dava sinais de liderança enquanto médio do Motherwell. “Ele sempre pensou profundamente o futebol, não foi qualquer surpresa a carreira que forjou e o excelente treinador que se fez. Posso ter cometido o erro de não o ter escolhido nessa altura como técnico... mas era jovem e jogava bem.”
Ronaldo, a difícil gestão
Além da ligação a Martínez, Pat Nevin fala com entusiasmo de João Félix, suspirando pelo seu brilho no Chelsea que sempre apoia. Não tivesse a sua ficha 238 jogos pelos londrinos, 44 golos, e papel decisivo na subida de 1983/84. “Félix é dos jogadores mais habilidosos do futebol mundial. Sou seu fã e acredito que, a seu tempo, será crucial para o sucesso do Chelsea. Neste momento, Cole Palmer é o principal criador, é excecional, mas estou ansioso que os dois joguem juntos. Penso que o Félix é subestimado em Inglaterra e até pelos adeptos do Chelsea. Eu acredito que será uma estrela da Premier League!”, defende Nevin, debruçando-se também sobre a gestão que tem sido feita por Cristiano Ronaldo. “Acho que tem sido esse o trabalho mais difícil de ‘Robbie’. Ronaldo foi um jogador especial, um dos maiores da história e ainda é um fenómeno. Mas é certo que obriga a que o jogo gire à sua volta. Isso pode nem ser mau, até porque foi ele que marcou o golo da vitória contra a Escócia já perto do fim, mas coloca todos os outros em segundo plano. Penso que o treinador tem feito uma boa gestão, mas quando Ronaldo se retirar, espero que outros talentos floresçam. É um problema muito bom de se ter”.
Portugal na ementa próxima
Licença para uma confidência, uma viagem prometida. “Adoro Lisboa e Porto e tanto eu como a minha mulher temos o plano de regressar. Poderei ter um pouco mais de tempo na minha vida em breve para concertos, festivais, cultura e artes mais vastas. Ou até mesmo jogar golfe (que adoro) ou ir ver mais jogos portugueses. Seremos visitantes mais frequentes”.
Iraque em vez de Espanha
Há histórias que definem um jogador fora da caixa. “Os quatro dias em Bagdade que o presidente do Chelsea, Ken Bates, nos presenteou em 1986. Contava-se com um estágio no sul de Espanha, mas fizemos um jogo com o Iraque, em pleno regime de Saddam. A maioria torceu o nariz, não saíram do bar do hotel. Eu gostei, aproveitei para conhecer a cidade e desfrutar da cultura”.
“Movin’on Up para os fãs”
Não se pode ficar à margem da música quando o entrevistado é Pat Nevin, que lidou com as grandes estrelas alternativas, viveu momentos e concertos icónicos, estando à hora certa no sítio perfeito para saborear encontros com Morrissey e tantos outros. Brincando um pouco, o desafio lançado ao escocês é uma pintura sonora do Hampden Park para este Escócia-Portugal. “Acho que os meus gostos não se adequam tanto a um campo de futebol, embora eu me divirta bastante como dj. Gostaria muito de passar ‘Spitfire’ de Public Service Broadcasting e talvez o ‘Movin’on Up’ dos Primal Scream, que iria agradar ainda mais aos fãs. Mas, dito isto, acho que qualquer música dos The Proclaimers é que iria alegrar mais o ambiente”, afere... sentindo o pulsar da partida a chegar e também uma experiência recente que fica para guardar. “Fiz de dj na noite anterior ao Escócia-Alemanha num evento do Europeu. Entre muitos famosos do futebol estava Sir Alex Ferguson. Dei o meu melhor mas não sei, exatamente, se ele gostou quando coloquei a soar o ‘My New House’, dos Fall”, atira, aprofundando o tom jocoso. Por falar de escolhas musicais, fica um toque à memória, quando Ricardo Carvalho, então no Chelsea de Mourinho, se rendeu a ‘Fools Gold’, dos Stone Roses, como música predileta num inquérito a todo o balneário. O antigo central está hoje na retaguarda de Martínez e Nevin imagina duas de letra. “Fools Gold é uma grande faixa, eu preferiria ‘Wrote For Luck’, dos Happy Mondays, com a mistura usada no vídeo, pegando também na cena de Madchester. Estou quase tão impressionado com o gosto do Ricardo como com a sua capacidade de jogador”, reflete. “Foi um dos maiores defesas que já jogou em Inglaterra e, ao lado de Thiago Silva, provavelmente, o melhor defesa a jogar pelo Chelsea… E é, de facto, um grande elogio, reparem nos grandes nomes que já lá estiveram”, afirma.
“Sempre adoro o tema de jogadores com gostos musicais que partilho. Mendieta é aquele que mais se aproxima do meu gosto. No Everton também Leighton Baines tinha coisas muito interessantes nas suas escolhas. E não posso esquecer o galês Barry Horne, uma autêntica enciclopédia de música alternativa. Já a maioria vai por gostos muito diferentes..”, expressa Nevin, recuando ao privilégio de ter ficado íntimo de John Peel, estrela radiofónica. “Ao estar no Chelsea, em Londres, escrevia uma coluna de música para o jornal do clube e decidi entrevistar o John. Ficámos logo amigos”.
“Futebol nas minhas paredes, não!”
Do menino rodeado no seu quarto por posters de bandas que idolatrava e álbuns pelos quais fervilhava, ao homem feito que tem a casa dominada pela vanguarda artística, Pat Nevin marca o território das suas prioridades. “Tenho tendência a não viver no passado, estou sempre à procura de coisas novas, seja música ou experiências. Quanto às paredes quando era criança, mudaram de um poster dos Genesis ‘Seconds Out’ para os Joy Division num ano. Os jogadores de futebol, mesmo que fossem lendas do meu Celtic, não chegavam às minhas paredes. Iria sempre preferir Bowie”, conta, saltando para o presente e preferências maduras dos 61 anos. “Na minha sala tenho reproduções de obras de arte de Vermeer e algo também dos coloristas escoceses Cadell e Peploe. Os meus dois filhos tiram fotos maravilhosas, também mora lá esse trabalho”, evidencia. “Tenho uma vida muito feliz, um emprego onde sou pago pela BBC para ver futebol e comentar sobre ele… por toda a Grã-Bretanha, na Europa e no mundo. É um grande trabalho, o segundo melhor… depois de jogar futebol!”, vinca o Jogador Acidental, título do último livro. “Adorava jogar futebol, mas não queria fazer disso uma profissão. Estudava para me licenciar, pensava ser professor. Era algo sensato. Futebol era diversão e amor. Mas com o avançar das coisas, ficou bastante complicado e acabei por ter que dar uma chance ao futebol profissional. Foi um começo incomum com algumas incertezas”.
Maloney, um amigo e herdeiro das causas
Shaun Maloney foi o jogador especial de Roberto Martínez no seu fantástico reinado no Wigan, levando os “Latics” à conquista de uma Taça de Inglaterra. O espanhol começou a sua carreira num clube onde jogara e teve uma influência brutal nos jogadores, à cabeça no criativo escocês, que também perdeu a final da Taça UEFA para o FC Porto, quando militava no Celtic. Maloney, hoje treinador do Wigan, ficou sempre ligado a Martínez e quando este avançou para o comando da seleção belga não hesitou em atrair o escocês, que desenvolvia funções na academia do Celtic. Chamado para adjunto, voltaram a trabalhar juntos entre 2019 e 2021, com auge no Europeu 2020.
“É muito amigável e tem uma postura muito comedida nos resultados. Quando correm mal assume como etapa de aprendizagem. Transmite muita calma e confiança”, gaba Maloney, tocado por uma eficiente harmonia, estabelecida desde o primeiro dia e por inegociáveis mandamentos. “A filosofia é muito ofensiva, foca-se na posse, pelo que encaixou muito bem em Portugal. Tem uma preocupação meticulosa com aspetos individuais, sem deixar de ser exigente com o que pede. É uma pessoa agradável que faz do ambiente de treino algo muito diferente”.