#desportoemtempodeguerra >> Norte-americano de nascimento e neerlandês convicto, foi um craque judeu do maior clube dos Países Baixos. Era um homem gentil e o primeiro futebolista a ter clube de fãs. Passou de astro da bola a prisioneiro em Auschwitz e morreu por ter um abcesso dentário. A história não o esqueceu; o futebol também não. Esta é a historia de Eddy Hamel.
Corpo do artigo
Eddy Hamel não era bem americano nem totalmente holandês, mas houve duas coisas que ele foi por completo: craque do Ajax e judeu. Foi o que lhe deu a vida e a morte.
A história de Eddy Hamel e de tantos outros neerlandeses judeus começa... em Portugal, mais concretamente a perseguição fanático-religiosa que conduziu à expulsão dos judeus do reino português durante o final do século XV. D. Manuel I queria uma Ibéria unida e seguiu, em 1496, o exemplo de Castela e Aragão quatro anos antes: a obrigação de todos os judeus se converterem ao cristianismo, sob pena de expulsão ou, mais tarde, de morte. A comunidade judaica sefardita abandonou Portugal, levando consigo muita da "intelligentsia" da altura, encontrando abrigo nos Países Baixos - em Amesterdão, a Sinagoga Portuguesa é até hoje o maior local de culto judeu local.
Filho de pais de origem holandesa, Eddy Hamel nasceu em Nova Iorque, mas mudou-se em criança com a família para Amesterdão. Sempre se considerou mais neerlandês do que americano, mas as origens nos Estados Unidos poderiam ter-lhe sido providenciais quando atingiu a idade de 40 anos. Antes, houve muito futebol.
A veneração
Hamel foi dos mais populares jogadores das primeiras décadas de vida do Ajax, clube orgulhosamente ligado à comunidade judaica holandesa. Extremo-direito por vocação e famoso por destino, Hamel era de popularidade tão grande que foi o primeiro futebolista nos Países Baixos, como agora se chama oficiamente a Holanda ,a ter o seu próprio clube de fãs, algo inaudito nas primeiras décadas do século XX. Após uma carreira bem sucedida no Ajax entre 1922 e 1931, e a deter a veneração do público, Hamel levava uma vida pacata com a esposa Johanna e os filhos gémeos Paul e Robert em Amstelkade (sul de Amestedão), treinando vários clubes das cercanias e atuando pelos veteranos do Ajax.
Mesmo sem ganhar títulos na década de 1920, o Ajax gozava de uma popularidade indisputada numa Amesterdão que era um autêntico caldo cultural e onde a miscigenação racial já se vislumbrava. Era uma cidade livre do espartilho preconceituoso que sufocava outras nações europeias e a Holanda já à altura era uma brisa de tolerância e progressismo social. Embora fosse - e é -, muito mais do que um clube de judeus, o hoje mais consagrado e popular emblema dos Países Baixos detinha contudo, à época de Hamel, um palmarés que se contava pelos dedos de uma mão. Mau grado ter só dois títulos de campeão (hoje tem mais 29...) o Ajax era adorado e os cânticos dos adeptos trovejavam pela cidade quando a multidão caminhava por becos e vielas, à beira dos canais até ao Het Houten, estádio do Ajax entre 1907 e 1934. Foi o palco que Hamel teve a seus pés com as suas fugas ziguezagueantes pela direita, que tinham quase sempre como desfecho um centro letal para a área em forma de atalho para o golo - o homem de Nova Iorque totalizou 8 golos em 125 desafios pelos lanceiros.
Pouco se ficou a saber sobre as atividades extra-desportivas de Hamel quando o amadorismo era a lei. Rob van Zoest, responsável pelo livro do centenário do Ajax, desenterrou a ficha de Hamel nos serviços administrativos do clube.
O horror
Com o deflagrar da II Guerra Mundial, os nazis entraram como cães em vinha vindimada pelo pequeno território neerlandês em maio de 1940. Quando a Wehrmacht (forças armadas germânicas do III Reich) lançou o "blitzkrieg" pela Europa continental, a Holanda rendeu-se em menos de um fósforo depois de os alemães obliterarem quase por completo Roterdão, ainda hoje dos portos mais ativos do mundo e vital ponto geo-estratégico. A segregação pré-genocida que se seguiu foi também rápida. Cerca de 80 mil dos 140 mil judeus que viviam na Holanda residiam em Amesterdão. Alguns esconderam-se, uns poucos escaparam, mas quase todos foram presos, deportados, escravizados e despidos da sua condição humana até à execução. O Ajax foi rapidamente identificado como "Judenklub" (clube de judeus) e a sua atividade condicionada durante a ocupação. No livro "Ajax, The Dutch, The War", o autor Simon Kuper investiga este período cinzento da vida sócio-desportiva holandesa, ainda envolto por uma neblina na qual se misturam silêncios, orgulhos, vergonhas, suspeitas. Só em 1944/45 a liga holandesa não se jogou, mas, no Ajax, símbolo da presença judaica, até hoje perduram acusações de covardia e colaboracionismo durante os anos de ocupação nazi. Depois da guerra, ficou famoso o Comité de Purga, criado e presidido pelo ex-internacional holandês Jan Schubert, o qual passou 18 meses escondido durante a guerra. Schubert fez acusações graves de apoio efetivo aos nazis em nome do Ajax por parte de pessoas até ali muito consideradas no clube - todos foram expostos, expulsos e tornados párias na sociedade holandesa.
RLM7loa_VDI
O prisioneiro 98289
Em janeiro de 1942, uma locomotiva contendo 659 judeus chegou ao campo de concentração nazi de Auschwitz, sul da Polónia. O comboio saíra de Westerbork, cidade holandesa que servia de ponto de trânsito, e terminava uma viagem tortuosa de 36 horas. Ao abrir-se a porta de um vagão nauseabundo, impróprio para transporte de seres humanos, vários passageiros saíram. Entre eles estava um homem de figura imponente. Trazia vestido um sobretudo sujo pela viagem e saracoteava-se. Tinha ainda vestígios de uma opulência recente. Fora da escuridão da carruagem, várias pessoas reconheceram-no: era Eddy Hamel. Muitos dos judeus que com ele fizeram a viagem tinham-no visto em ação não muitos anos antes e agora todos ali estavam, numa antecâmara de morte.
Na sua obra excelentíssima, Kuper conseguiu o testemunho de Leo Greenman, sobrevivente dos campos de morte que conheceu de perto Hamel em Auscwhitz e contou como foram os últimos momentos do ex-craque. A sorte de Hamel mudara quando fora preso em Amesterdão por não usar a Estrela de David, como ordenado pelos nazis após identificarem e segregarem judeus. Neste ponto da história, falhou a conexão norte-americana. Hamel foi incapaz de provar que nascera em Nova Iorque, o que teria sido a sua salvação, uma vez que os alemães poupavam judeus provenientes da América ou de Inglaterra, utilizando-os para troca de prisioneiros de guerra. Foi separado da família e enviado para Westerbork e depois para o campo de extermínio Auschwitz-Birkenau.
Leo Greenman - tatuado como prisioneiro 98288 - , conta que só a meio do convívio com Hamel se apercebeu do passado desportivo do seu companheiro de camarata, tatuado logo atrás de si, presumivelmente como prisioneiro 98289. Garante o sobrevivente que o seu amigo se manteve digno e simpático até aos últimos instantes, suportando com estoicismo as condições inumanas do campo, onde cumpriu trabalhos forçados durante quatro meses, sob neve intensa.
Numa manhã de 1943, Greenman e Hamel estavam na fila para a inspeção médica. Qualquer maleita detetada poderia significar o fim. Hamel queixou-se: "Leo, tenho um abcesso num dente... Que me vai acontecer?..." Obedecendo à ordem numérica, Greenman seguiu na frente. Foi examinado. Passou para a direita e foi ver um novo dia. Hamel vinha logo atrás. Foi examinado. Passou para a esquerda e nunca mais foi visto.
Após, a II Guerra Mundial, o Ajax tornou-se ainda maior. É o maior do seu país. Dos maiores da Europa. Há quem os trate por Super Judeus. Eddy Hamel foi um dos seus primeiros heróis.