Seleção voltou a jogar, após o cerco a Gaza. Médio Mohamad Rashid explica sentimento levado para jogos com Líbano e Austrália
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A Palestina disputou a 16 e 21 de novembro dois jogos de apuramento para o Mundial, diante de Líbano e Austrália, abordando estes compromissos num contexto pesado, uma amálgama imagética de horror em Gaza, um tormento na alma de cada jogador. Serviu este período de concentração para conter as ondas de choque, invocar o orgulho e sensibilizar a comunidade internacional para que os incessantes bombardeamentos cessem, já que o futebol expande um grito poderoso pelo Mundo.
Conheça-se as histórias de Saleh e Wadi, naturais de Gaza, com familiares atingidos nos bombardeamentos . Rashid fala da vontade de usar o palco futebolístico e passar mensagem ao Mundo.
Os dois encontros foram influenciados pelo clima de guerra, o Líbano, que era anfitrião, transferiu o seu jogo para os Emirados Árabes Unidos, por ser vizinho do conflito, e a Palestina, como é tradicional, teve de usar casa emprestada, desta feita no Kuwait. Com o Líbano, os jogadores entraram de “keffiyeh”, um lenço outrora muito associado a Yasser Arafat, mas que está simbolizado como valor de existência no que são agruras e agonias territoriais.
O saldo foi de um ponto, empate com os irmãos libaneses, ficando em branco Dabbagh, antigo avançado do Arouca e estrela maior da seleção. Com mais de 16 mil mortos do lado palestiniano desde a resposta israelita ao ataque do Hamas, quisemos auscultar a reação do futebol a acontecimentos terríveis e às implicações globais.
“Nunca tínhamos vivido um cenário antes de um jogo assim! Episódios difíceis, mas sem esta destruição”
Mohamad Rashid, 28 anos, médio do Bali United, da Indonésia, já com 34 internacionalizações, traçou-nos o retrato deste estágio internacional, até porque ao mesmo foram dois jogadores de Gaza, já afetados por perdas de familiares, casos do central Saleh (Ittihad Alexandria) e Wadi (El Mokawloon), ambos a atuarem em clubes egípcios.
“Foram jogos muitos emotivos! Nunca tínhamos vivido um cenário que antecedesse um encontro assim. Já aconteceram episódios difíceis, não os posso considerar menores, mas com esta expressão de destruição não! Lembro-me de ter feito algum jogo depois de entrarem na Cisjordânia e matarem algumas pessoas. Agora temos milhares de pessoas massacradas, mortas e casas destruídas. Foi diferente, sem dúvida!”, desabafa Rashid, que jogou em equipas palestinianas, nomeadamente o Hilal Al-Quds, entre 2017 e 2020, que compete no West Bank - Liga da Cisjordânia, depois de ter crescido nos Estados Unidos, com graduação na Universidade de St. Francis.
“O que sentimos trouxe à tona o melhor de todos os jogadores, os nossos desempenhos demonstram-no. Só não tivemos sorte com os resultados. Foi duro e emocionante”, confessa o médio, entendendo o papel do jogo na proliferação de apelos. “Onde jogue tenho sempre presente o que se passa com o nosso povo, já estou habituado, não se tratou de qualquer desafio suplementar. Tentamos dar o nosso melhor e usar o palco que temos para enviar uma mensagem ao Mundo sobre quem somos e o que está a acontecer na nossa terra. É algo que está connosco, vivemos isto e vivemos dentro disto! Não é normal mas vamos tentando aprender a lidar ou a adaptar”, relata Mohamed Rashid, tocando no alento dado a quem mais precisava.
“Temos dois jogadores de Gaza com as respetivas famílias lá, casos do Saleh e do Wadi. Têm familiares que morreram. Portanto, também tivemos de lidar com isso, emocionados, mas tentámos retirá-los desses pensamentos mais tristes e prepará-los para os jogos. Até usámos piadas, procurámos brincar uns com os outros para que eles sentissem que estavam em ambiente de família dentro da equipa. Fizemos isso e acho que ajudou todos. Mas não dá para suspender a tristeza e o pesar dos nossos corações, até porque eles continuam a ter lá os seus familiares e não sabem o que está a acontecer. As comunicações com Gaza estão cortadas”, lamenta, solidário com os companheiros.
Jaber muito ameaçado
“Escolheu servir quem quis”
Ataa Jaber deixou para trás o histórico no futebol israelita e como capitão da seleção sub-21. Defende, agora, a seleção da Palestina. O minuto de silêncio por Gaza que o atleta, que atua no Azerbaijão, cumpriu frente ao Líbano motivou reações de ódio, com antigos colegas e antigos treinadores a cortarem laços e pedirem revogação da sua cidadania, o empresário a rescindir o contrato, bem como soldados a inscreverem o seu nome em mísseis.
“Ele é tão somente um jogador palestino, árabe e muçulmano. Merece representar o país que elegeu. Estamos solidários, vamos apoiá-lo sempre. Ele tem o direito de escolher e servir quem quer. Foi o que fez”, explicou Rashid. Ataa Jaber, natural do norte de Israel, numa região de maioria árabe, justificou a sua decisão a partir de acontecimentos próximos de si no bairro de Sheikh Jarrah.
“Coragem e bravura no ato de El-Ghazi”
Rashid ataca as visões contraditórias sobre as guerras e dá o exemplo do despedimento de um jogador pró-palestiniano pelo Mainz
Identificando tratamentos desiguais à escala global, o complexo olhar crítico do Mundo ou dos mais poderosos, Rashid fez questão de declinar, na Indonésia, uma mensagem da FIFA sobre a guerra na Ucrânia, em que as duas equipas posariam com a tarja ‘Stop War’. “Muitas vezes parece que a corrupção ou opressão são temas que só importam quando tocam a Europa ou a América, se é um país africano ou árabe pouco interessa. Há padrões duplos, fala-se a apela-se à paz na Europa e na América do Sul, mas se forem países africanos ou árabes já são cegos quanto a negociações pacíficas. É um mundo perturbador”, desabafa, indignado com a rescisão de contrato do Mainz com El-Ghazi.
Rashid já foi notícia na Indonésia ao afastar-se de uma foto ‘Stop War’ referente à Ucrãnia. Exige tratamento igual noutros pontos do globo. O caso paradigmático do homem do Mainz.
“Falo de humanidade. É desumano agir assim com um jogador. Zinchenko fez o mesmo pelo seu país quando começou a guerra. Ninguém disse nada sobre isso. Era normal misturar política e futebol naquele contexto, parece que depende de quem faz! Minimizam a nossa vontade de ter uma vida normal, a liberdade de ter um país, de ter o que é nosso. Espero e rezo para que El-Ghazi encontre uma equipa e assine contrato quanto antes. Merece! Teve um ato de coragem e bravura. Não ficou em silêncio, manteve as palavras, não recuou no que acredita”, diz. “Vejo coisas nojentas, como pessoas que trabalham na ajuda humanitária, ignorarem o que se passa em Gaza. Esta guerra esclareceu muita coisa quanto à prioridade das pessoas sobre o julgamento de quem é a vítima e quem é o opressor. Vemos a verdade do que muita gente pensa em relação à Palestina”, realça.
Dabbagh, a cara da seleção
Sobre Dabbagh, compreende os cuidados do avançado do Charleroi, ex-Arouca. “Ele sempre teve um caminho difícil mas hoje é a cara da nossa seleção, é ele que diz a todos os jovens que podem jogar ao alto nível. Agora está na Bélgica, vive o contexto europeu, e há muitos olhares voltados para ele, tem de ser cuidadoso a agir. Se marca e diz algo, se escreve... Esperamos muito do seu progresso e estamos a torcer para que nada disto venha influenciar a sua chegada a clubes maiores. Irei sempre rezar por ele. Sei o que ele passou vivendo em Jerusalém, os postos de controlo que enfrentou, os treinos que perdeu, as viagens que não pôde fazer e os contratos que não pôde assinar”, argumenta Rashid, que tem evoluído na Indonésia, menos sujeito a voz silenciosa.
Liga local está praticamente perdida
Constrangimentos, exemplo de gases lacrimogéneos, e agora os mísseis que varreram a região
Rashid está longe da tensão, na Indonésia acompanha as notícias com consternação e revolta pelo terror de algumas imagens. Desesperado pelas mortes que se conhecem, o atleta vai percebendo que o futebol dificilmente sobreviverá em Gaza.
“Está tudo parado. Não há salários nem futebol, vive-se um dia de cada vez. Em Gaza o futebol parou e acabou, a liga talvez irremediavelmente terminada, os estádios foram bombardeados e destruídos, mesmo o mais recente, de Rafah. Na Cisjordânia não há movimento entre cidades, não há dinheiro. Israel fechou as estradas, o futebol está parado”, documenta, partilhando a dura realidade de um jogador palestiniano, hoje e antes...
“As ameaças são constantes, joguei no ano passado pelo Jabal al Mukaber uma final da Taça da Palestina e durante o encontro foram largados gases lacrimogéneos que nos começaram a sufocar. O jogo foi parado meia hora. Há ameaças recorrentes, muitos jogadores não chegam aos estádios para jogar porque não os deixaram sair das cidades ou vilas. Há sempre problemas, as burocracias que impedem o jogador local de ser reconhecido e inscrito noutras ligas.”