"Não tinha carta de condução, mas aos 15 anos já andava a conduzir em Paris"
ENTREVISTA, PARTE 2>> O atual adjunto da seleção dos Camarões, Tony, cresceu num bairro dos arredores do Paris onde o mais difícil era ter "uma vida normal". Segundo conta, 90 por cento dos amigos "foram presos ou morreram".
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Chatou, o bairro dos arredores de Paris onde vivia a família de Tony, marcou-o para toda a vida em vários aspetos.
Rodeado de problemas sociais de vária ordem, Tony acredita que só não embarcou na viagem das drogas duras porque, logo no primeiro dia de escola, teve uma experiência que lhe serviu de "vacina"
Como era o bairro onde vivia na juventude?
-Havia lá gente de todo o mundo. Tinha árabes, africanos, espanhóis, portugueses, marroquinos, argelinos... Andávamos muitas vezes à porrada, bairro contra bairro. E aí valia tudo. Ou tinhas pernas para correr ou então estavas lixado. Muitas vezes vínhamos para casa com as sobrancelhas abertas.
Era lá que passava os dias?
-Só até aos 12 anos. Depois, durante a semana estava na Academia do PSG e só ficava no bairro ao sábado à noite e ao domingo. Mas no centro também fazíamos disparates. À noite fugíamos e íamos para todo o lado. Eu não tinha carta de condução, mas aos 15 anos já andava a conduzir em Paris e por todo o lado.
Quem era o seu melhor amigo, lembra-se dele?
-Era o Kharim, argelino, um dos poucos que hoje é alguém na vida. E quando digo ser alguém na vida é ser pai de família, ter uma vida normal. 90 por cento dos amigos dessa altura ou estão presos ou morreram. Também me dava bem com o Léo, um brasileiro que foi comigo para o PSG, que era muito promissor mas que infelizmente se perdeu na má vida. Deixou-se levar. Esses eram os amigos do peito. Até me arrepio a falar. Mas não tenho vergonha. Quando se erra é que se percebe o que é bom e o que é mau. E é isso que vou ensinar ao meu filho.
"Quando desci as escadas do prédio, estava lá um tipo a injetar-se. Foi uma imagem que me marcou muito e, aliás, ainda a consigo ver. Nunca vou esquecer"
Chegou a meter-se em drogas?
-Nunca. Talvez porque fiquei marcado pelo meu primeiro dia de escola, aos seis anos. Quando desci as escadas do prédio, estava lá um tipo a injetar-se. Foi uma imagem que me marcou muito e, aliás, ainda a consigo ver. Nunca vou esquecer. E era um tipo que morreu de overdose três anos depois. Vida de bairro é complicada. Quando os jovens dali vão pedir emprego, se as pessoas veem que eles são de lá, são logo cortados. Não é desculpa, mas há muita revolta nos jovens por causa disso.
Após deixar o PSG, veio para Portugal e tinha convites das equipas B do FC Porto e do Benfica. Assinou pelo Chaves. Afinal, era o clube do coração
Como adjunto de António Conceição, trabalha com nomes como Matip, Onana ou Choupo-Moting
Hoje em dia, Tony é um profissional bem sucedido, ocupando o cargo de treinador-adjunto na seleção dos Camarões, liderada pelo compatriota António Conceição. Já chegaram a fazer três jogos, mas viram o trabalho interrompido pela pandemia. "Em março, estávamos nos Camarões quando aconteceu isto. Voltámos para Portugal e agora temos trabalhado, em contacto constante uns com os outros", explica, referindo-se também a Luís Baltasar (adjunto) e João Renato (preparador físico), os outros portugueses da equipa técnica.
"Falamos por videoconferência e observamos muitos jogos antigos", conta, orgulhoso por estar a trabalhar diretamente com futebolistas da elite mundial: "Temos uma seleção muito boa, com jogadores como o Matip, do Liverpool, o Choupo-Moting, do PSG, ou o Onana, do Ajax. São jogadores de topo e o que nós procuramos é que eles se sintam felizes e joguem com um sorriso na face. Quando um jogador é feliz tem mais facilidade em jogar bem".