Passaram 30 anos desde que os Estados Unidos receberam a maior prova de futebol do planeta. Um evento espetacular pela novidade e pelos nomes que ali desfilaram
Corpo do artigo
Febril, incrível e espetacular. O Mundial de 1994 nos Estados Unidos atingiu os 30 anos, quando a grande nação já acelera todos os trâmites para a organização de novo evento em 2026. Muita coisa se alterou, o certame terá outra envolvência, a começar pelo facto dos Estados Unidos terem o México e o Canadá associados à empreitada, e a prova chamar 48 países pela primeira vez na história, ao passo que o Mundial de 1994 era o último com metade desta fatia: 24.
Foi o Mundial do Brasil, do craque Romário, de Hagi, Stoichkov, Brolin, que fizeram as delícias dos adeptos e conduziram Roménia, Bulgária e Suécia a grandes participações, o Mundial onde chegou uma superfavorita Colômbia, apontada como pretendente ao troféu após ter vencido a Argentina, fora de portas, na qualificação, por 5-0. Os jogos correram tão mal aos cafeteros, que as derrotas iniciais com Roménia e Estados Unidos significaram o adeus. Andrés Escobar, defesa colombiano, sofreu o preço mais alto de um autogolo na história do futebol, precisamente no cruel jogo com a seleção anfitriã, no Rose Bowl, de Los Angeles. O emblemático central seria assassinado com vários disparos em Medellín, poucos dias após regressar ao seu país.
A Copa de 1994 foi também estranhamente pontuada pelas ausências de Inglaterra e França, que viveram os seus pesadelos ao caírem na qualificação europeia, os primeiros superados por Países Baixos e Noruega, os segundos por Suécia e Bulgária, que viriam a mostrar os seus vastos argumentos até disputa de um jogo de 3.º e 4.º lugar. Um Mundial de grandes protagonistas, Romário destacou-se como jogador da prova, somando parceria de sonho com Bebeto, Roger Milla fez o gosto ao pé e ainda é o jogador mais velho marcar em Mundiais, pois caminhava para os 43, tendo assinado esse momento num dia maldito para os Camarões, goleados pela Rússia (6-1) jogo que fez imortal Oleg Salenko, autor de cinco golos num só encontro, consagrando-se goleador da prova com seis, os mesmos que Stoichkov.
Também a Arábia Saudita, que causou sensação no Catar, fizera o mesmo na sua primeira participação em Mundiais, vencendo a Bélgica por 3-1 com um lance de inspiração de Saed Al-Owairan a valer um lugar cintilante entre os melhores da história dos Mundiais, fintando meia equipa belga como Diego Maradona fizera contra a Inglaterra em 1986. Por falar em El Pibe, volta à seleção para jogar o Mundial, após anos de declínio, endoidece a Argentina com um golo fabuloso à Grécia mas, no dia seguinte, é revelado prevaricador por consumo positivo para substâncias ilícitas, sendo banido da competição, num terremoto emocional para a nação das pampas.
Resumem-se, assim, estrelas que levaram o assombro e geraram magnetismo numa prova pejada de partidas lendárias, jogos emocionantes e momentos de perdição, como aqueles que tiveram Marco Etcheverry, estrela boliviana que sai do banco para ser expulso imediatamente por agressão a Matthaus no jogo inaugural, conseguindo a Alemanha superar os sul-americanos graças a um golo de Klinsmann. De cabeça perdida, Leonardo meteu o cotovelo na cara de Tab Ramos, no jogo dos oitavos de final, onde o Brasil muito suou para ultrapassar os Estados Unidos. O brasileiro foi suspenso por quatro jogos, perdeu ensejo de jogar a final e sentir com todos os ingredientes o tetra da canarinha, ao passo que o criativo norte-americano, de raízes uruguaias, ficou largos meses sem poder jogar, por grave fratura na face e lesões cranianas. “Foi muito difícil. Estava numa ótima fase, fazendo um grande jogo contra o Brasil e criando situações de perigo. Subitamente, Leonardo perdeu a cabeça e deu-me uma cotovelada. Deixou-me fora seis meses. Venceram-nos por 1-0. Era um bom jogador, alguém que apreciava muito, que não era conhecido por ser violento. Algo que pode acontecer! Mas paguei um preço elevado”, recorda Ramos.
Trio de Kearny a representar 300 milhões
Tab Ramos aceitou resumir o apoio especial que ele, John Harkes e Tony Meola recebiam no Mundial de 1994. “Éramos amigos íntimos, todos oriundos da mesma cidade de Nova Jersey, que era Kearny. Os nossos fãs seguiam-nos para todo o lado com bandeiras e os nossos nomes, estavam orgulhosos de ver três jogadores de uma pequena cidade na seleção. Kearny, de 30 mil habitantes, tinha três jogadores numa seleção que representava um país de 300 milhões”, explica Tab Ramos, elegendo Wynalda como o “homem que aliviava a pressão, além de ser um avançado incrível.”
Caricatos diálogos de Bora Milutinovic
Thomas Dooley é um dos mais experientes do elenco de Bora Milutinovic com carreira já desenvolvida a partir da Alemanha. “A sua liderança foi fundamental, se não incomparável. Moldou a equipa de forma notável e até me arrisco a dizer que este grupo de jogadores foi o melhor com quem tive o privilégio de jogar”, observa, espremendo o melhor sumo possível do contacto com o técnico da velha Jugoslávia. “As reuniões e concentrações com Bora sempre foram marcantes. O humor dele era incrível, muitas vezes deixava-nos em estado de choque. Fazia discursos e contava histórias em espanhol, muitos entendiam porque eram hispânicos”, graceja. “Já eu não tinha qualquer ligação, tendo crescido numa Alemanha fronteiriça com a França. Só tinha cidadania americana de nascimento, falava apenas alemão e francês, não tinha ligação ao meu pai nem tinha inglês na escola. Tínhamos Renato Capobianco como intérprete nessas palestras, muitos jogadores riam-se descontroladamente. Renato recompunha-se e traduzia tudo para inglês, demorava um pouco e seguiam-se mais gargalhadas”, acrescenta, citando o salvador.
“Caligiuri, meu companheiro, ajudava-me, compreendia um pouco de alemão e traduzia o inglês para mim. Só me ria, era o último a entender a mensagem, Bora fazia uma pausa e todos se viraram na minha direção. Eu ria-me de algo que já tinha passado há cinco minutos”, confessa, invadido por outro flash da época. Bem caricato e lapidar da hierarquia desportiva no país. “Estávamos instalados em Dana Point, viajávamos colina abaixo do nosso hotel até ao centro de treinos Mission Viejo, onde existiam imensos campos de basquetebol. Estavam lotados de jogadores de todas as idades e ninguém nos prestava atenção, mesmo com escolta policial de motos e carros a tocarem sirenes”, desfia... num relato inimaginável. “Estavam absortos com o jogo que faziam. Era o contraste com o que se seria de esperar em países loucos por futebol. Eu pensava para mim ‘vamos malta, estamos a representar-vos no Mundial, vocês não têm ideia!’, partilha...munido do segundo capítulo. “Isso só mudou com a vitória frente à Colômbia, que já rendia a nossa qualificação. Algo extraordinário aconteceu! Todos os jogadores, miúdos e mais velhos, pararam subitamente de jogar, foram até à rua e começaram a aplaudir-nos. Foi incrivelmente tocante.”
Onde o futebol conseguiu renascer
O futebol norte-americano disparou de atenção após 1994 e essa colheita de jogadores que estiveram no Mundial ficará para sempre eternizada como os grandes percursores de um novo paradigma, de uma exaltação de talento e uma vertigem arrepiante. A MLS surgiria logo em 1996. Tab Ramos, de sangue latino, era expoente criativo. “Como jogadores, sentimos que esta era a melhor e talvez a única oportunidade para atrair fãs para o futebol neste país e para ajudar a lançar uma liga que competiria com outros desportos”, explica, recuando a um desafio na mente de todos. “Desportivamente, tínhamos sentido um certo falhanço como deveríamos ser como equipa em 1990 e sentimos que, em 1994, já tínhamos um conjunto mais competitivo e com experiência europeia suficiente para surpreender qualquer adversário. Foi uma prova recheada de estrelas e não faltou a maior delas: Diego Armando Maradona”, atira com um brilho a raiar.
“O futebol renasceu nos Estados Unidos após esse Mundial, as pessoas na rua passaram a discutir jogos e falar de jogadores. Conseguimos dar o impulso necessário para que aparecesse logo depois a MLS”, relata Tab Ramos, não esquecendo jogos tão emblemáticos dignos de uma exposição em museu. “Destaco o jogo com a Suíça, o primeiro de sempre em Mundiais jogado em ambiente fechado. Foi difícil, estava extremamente quente, não havia ar condicionado e era um barulho ensurdecedor. Wynalda marcou um belo livre que nos deu um precioso empate. Depois dá-se a Colômbia. Eles eram favoritos até a vencer a prova. Conseguimos vencer por 2-1, perante 90 mil pessoas e a Colômbia foi eliminada. E destaco ainda a final do Mundial, ver o Brasil derrotar a Itália nos penáltis foi um acontecimento fantástico. Era uma final de um Mundial nos Estados Unidos!”, evidencia. “Quanto aos jogadores, a combinação Bebeto/Romário era soberba, Stoichkov levou a Bulgária longe, a habilidade incrível de Hagi e ainda vimos a classe de Paolo Maldini e a capacidade defensiva de Baresi”, revela Tab Ramos.