ENTREVISTA, PARTE III - Aos 28 anos, Zé Valente tem noção de que o tempo de ter uma oportunidade entre os grandes já passou.
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-A realização atual diz-lhe que o futuro passará mais uns anos pela Indonésia?
-As minhas expectativas passam por me sentir feliz e motivado, porque só assim é possível mostrar o melhor de nós. Gostaria de continuar por cá, estou feliz e consigo financeiramente contratos melhores do que em Portugal, dentro daquilo que era a realidade onde me encontrava. Isso também é importante para mim e para a minha família. Em relação a jogar na Liga, era um desejo há uns anos. Neste momento deixou de o ser, precisamente porque sou demasiado realista e sei que isso não vai acontecer, ninguém sai da Indonésia para a Liga. Não acredito em milagres e não é por não acreditar no meu valor, é porque eu entendo o mercado e, como já referi, existem timings e o meu já passou. Respeito e aceito isso e se não cheguei lá é porque as pessoas responsáveis entenderam que eu não tinha competência ou qualidade para estar lá. Resta-me desfrutar e trabalhar para tentar ficar por cá para o ano.
Uma massagem do adversário e a saída no tanque da polícia
-Como nos pode aproximar num par de histórias da cultura com que se deparou?
-Tenho bastantes situações engraçadas do dia-a-dia, constantemente acontecem coisas surreais. A mais engraçada talvez tenha sido quando levei uma massagem dois dias antes do jogo do massagista da equipa contrária no meu quarto de hotel, onde estava toda a comitiva do meu clube. Fomos nós que vencemos esse jogo e, no final, fui-lhe agradecer a massagem. Outra experiência única foi ter saído de um estádio dentro de um tanque da polícia por questões de segurança, nunca me tinha acontecido algo semelhante. Da cultura deles destaco a comida picante, que dá para pregar umas partidas porque é realmente muito para lá do que é o picante para nós. São muito ligados à religião e a esse propósito posso lembrar o dia que fomos todos à noite rezar para o nosso campo de treinos porque estávamos a ter muitas lesões e o treinador decidiu convocar essa reunião para rezarmos juntos a fim de termos mais sorte com as lesões. Eu tive que ir mas nem me juntei. Aquilo não fazia sentido algum para mim, mas decidi respeitar.
"Ricardinho é ainda mais craque fora do pavilhão"
-Sei que o Ricardinho é uma inspiração, ainda para mais jogando atualmente na Indonésia.
-Já nos conhecíamos desde que ele jogava no Inter Movistar, falávamos longe a longe mas foi sempre impecável na forma como me tratou, de uma humildade única e voltamos a estar juntos quando ele veio jogar à minha cidade. Fui ver o jogo... ou melhor fui ver um espetáculo dele! Chegámos a jantar e agora ele voltou à cidade onde estou. Retomou-se o contacto para estarmos juntos, o Ricardo consegue ser um craque muito maior fora das quatro linhas na forma como trata as pessoas sem olhar ao estatuto! Sei que parece impossível mas ele consegue ser muito mais craque fora do pavilhão, tenho um carinho muito grande por ele e desejo-lhe o melhor na sua vida profissional e pessoal .
A guerra na Ucrânia: "O meu pai chorou muito"
-Tem uma iniciação como sénior treinado pelo seu pai, no Aves. Sabendo que é algo sempre complexo, como avalia a experiência?
-É tudo uma questão de perspetiva, poderia servir de desculpa para muita coisa mas nem pensar ! Uma coisa eu tenho a certeza: fiquei um jogador muito melhor tanto no entendimento do jogo como também na parte mental. Foi um treinador que me ensinou e que me ensina muito aliado a um grupo que me apoiou sempre e que nunca em momento algum me tratou de forma diferente. Toda essa situação também me ajudou a lidar com a pressão, fiquei um jogador muito mais capaz de lidar com momentos de pressão porque ninguém imagina o que é entrar em campo com o teu pai no banco, apesar de ter sido muito acarinhado desde início pelos adeptos. Mas há sempre o receio de as coisas não correrem bem e começar a ouvir coisas menos boas, ou a caírem em cima de mim. E chega esse momento com o descarregar de frustrações dos jogadores que não jogam tanto mas não o comentas com o teu pai. Com ele nada falava de futebol. Chegava a casa e almoçava rápido para nem sequer me cruzar com ele. Uma série de coisas! Mas, felizmente, não me posso queixar muito, fui acarinhado na Vila das Aves e acho que a maioria dos adeptos nunca me olhou como o filho do treinador. Não foi um ano positivo em termos individuais nas ajudou-me imenso nos anos seguintes da minha carreira.
-Nunca se sentiu um jogador dependente da posição do pai?
-Ele é despedido no ano seguinte e eu fico mais três anos no Aves, renovei contrato e finalizei contrato com a subida de divisão à Liga. Resumidamente, um clube muito especial para mim.
-Como olha para a carreira do treinador Fernando Valente, entre as decisões que tomou e o facto de ter arriscado alguns anos na Ucrânia?
-Vai parecer suspeito porque sou o filho,mas quem me conhece sabe o quanto sou imparcial nestas situações. Mas o que é, é...Ele tomou as decisões dele ao longo da carreira muitas vezes a pensar mais nos outros do que nele e isso não o ajudou. Ele não se arrepende de nada nas escolhas feitas. Vi-o sempre feliz e sempre se entregou com paixão em todos os projetos. Mas, respondendo de forma muito clara, ele tem muita qualidade e vê o futebol de uma forma muito particular e à frente da maioria. Não é de agora, vem de trás. Respeita as ideias dos outros, porque sabe que é possível ganhar de várias formas mas tem um processo próprio. Eu acredito muito na forma como ele trabalha as suas ideias, torna o futebol simples e eu sou um privilegiado por ter sido treinado pelo Fernando Valente e por aprender todos os dias com ele.
-A guerra na Ucrânia tem também custos anímicos terríveis para ele, por toda a ligação que tinha tido com a academia do Shakhtar?
-A guerra teve um impacto muito grande no meu pai e até na sua carreira. Ele sentia que tinha ali possibilidades de crescer profissionalmente e de um momento para o outro surge a guerra. A partir daí a parte profissional deixa de ser importante e vem a parte emocional que é o que mais mexia com ele. Tinha criado laços muito fortes com as pessoas e com os jogadores e olhar para as notícias diariamente e pensar nos jogadores e nos amigos que ele deixou por lá e imaginar que estavam a passar por tudo aquilo foi devastador. O meu pai chorou muito, lembro-me de assistir a entrevistas dele onde, simplesmente, não conseguia conter as lágrimas, sempre que se tocava no assunto era algo delicado.
Do Aves ao Estoril
-Fazendo uma retrospetiva da carreira em Portugal, onde encontra as marcas mais fortes que deixou?
-Os melhores momentos estão claramente associados ao Aves com subida e também ao facto de ter tido outra subida à Liga com título de campeão pelo Estoril. No Aves fui tratado de forma incrível por toda a gente, recordo-me que sentia o clube como se vivesse a fase mais importante da minha carreira e fechar o ciclo com uma subida foi algo fantástico e único. Quem representou o Aves entende o que estou a dizer! Serei eternamente grato, da mesma forma que serei eternamente grato ao Estoril por uma oportunidade recebida num momento muito difícil. Era a fase da pandemia, era o meu regresso a Portugal, chegar ao Estoril encheu-me de orgulho e entreguei-me de corpo e alma. Ninguém imaginava o que estava para vir, foi graças a um grupo fantástico e um clube sensacional. Fui pai nesse ano, fui campeão e levantei a minha primeira taça com o filho nos braços. Isso é impagável e só posso torcer para que o Estoril se mantenha por muitos anos no patamar mais alto porque tem estrutura, condições e recursos humanos fora-de-série. Nunca trabalhei com pessoas tão competentes e apaixonadas como as que encontrei no Estoril. Não posso esquecer também o Vizela onde desportivamente não foram atingidos os objetivos desejados mas tenho de enaltecer que encontrei um clube muito à frente do tempo com objetivos claros do que queriam e pessoas fantásticas. Joguei no Campeonato de Portugal e agora estão na Liga. Vizela e Estoril, é justo dizer, acrescentaram muito ao nosso futebol e continuam a possuir excelentes equipas.