Bohemian FC, um tradicional clube de Dublin que joga por Gaza e pelos refugiados
Um exemplo vigoroso de trabalho social, agarrando a arte e auxiliando quem precisa
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Jimmy Dignam trabalha com Daniel Lambert e estes são dois rostos responsáveis de operações e marketing do ativismo social que marca o Bohemian FC, o tradicional clube de Dublin, capital da Irlanda, que deu uma volta à sua existência e prioridades, jogando com músculo na 1ª Divisão e honrando os seus dez títulos de campeão, o último deles em 2009, batalhando sem freio nem rodeios pelas causas, associando as suas lutas sociais para mobilizar seguidores. A bandeira da Palestina é acenada, a opressão condenada com múltiplos abraços ao povo de Gaza. O apoio aos refugiados nunca foge de vista, inúmeras campanhas tentam atenuar o choque de uma mudança. Não se esgota a atração, há muita música, perdurando a ligação com bandas, alternando-se a aposta no marketing criativo e artístico e o reivindicativo. As explicações funcionam como aula de valores.
“O clube começou a ter muitas dificuldades financeiras em 2010, enfrentando um futuro dúbio. Estivemos muito perto de desaparecer, mas conseguimos assegurar a continuidade como propriedade dos fãs. Somos assim, desde 1890! É muito pouco comum, o que nos rende orgulho. Os sócios votaram unilateralmente contra dinheiro externo em 2010, preferiram deixar de existir a receber dinheiro privado”, relembra Jimmy, o princípio de uma afirmação mais comunitária por cima de uma expropriação de identidade e uma queda na malha de outros interesses. Louva um “crescimento já com uma década”.
“Existiu uma crise existencialista e, na ausência de capital de fora, atacaram-se formas de assegurar a sobrevivência. Como a campanha anual dos brinquedos. Recebem-nos todas as crianças sem casa no Natal. A arte grafite foi outra força para a identidade do clube. Os nossos ultras levam tarjas e cantam muito. Temos diretores dentro da claque, muito confortáveis naquela esfera.”
Jimmy delicia-nos com o peso musical no clube. “É algo vibrante à nossa volta, promovem-se espetáculos diários. É, na realidade, um clube que conheces, conhecendo a sua história. Nos anos 70 existiram concertos célebres que se fizeram em Dalymount Park, como Thin Lizzy. Em 1980 foi a vez de Bob Marley, que pisou o nosso relvado antes de fazer a atuação. Foi a sua última a céu aberto. Decidimos homenagear Marley com uma camisola para os jogos fora em 2019. Funcionou muito bem. A minha preferida ainda é, mesmo assim, a camisola de tributo a Thin Lizzy”, salienta o chefe de operações do Bohemian, reconhecendo o reforço da cultura musical. “Através de concertos de punk rock mensais, representa-se a cultura local e procuram-se verbas solidárias. É uma preocupação de comunidade, é isso que nos destaca, todos os sócios sentem essa pertença. Cada cêntimo destas iniciativas vai para o clube, que exerce uma influência positiva na comunidade. Usa a sua voz!”, sustenta Jimmy, orgulhoso desta filiação do Bohemian a diversos e airosos domínios.
“Estamos perante acontecimentos horríveis no mundo. Não podemos fazer muito. Posso dizer que a área que nos dá mais orgulho é a justiça climática, liderada por uma equipa de pessoas incríveis e brilhantes. Queremos todos potenciar uma sociedade mais verde, mas sem que as pessoas da classe trabalhadora sintam o peso desse investimento. Em tempo de crise, é sobre elas que se abatem os problemas. Estamos a tentar usar o futebol e o seu poder para apresentar a nossa ideia e suportá-la com iniciativas inteligentes por uma transição justa.”
A visita da seleção feminina da Palestina a Dublin
Com Jimmy Dignam amplia-se facilmente a leitura do cenário solidário, os braços abertos dados a quem mais pede amparo, inclusive com contornos históricos. O grito constante de ajuda a Gaza é alavanca de muitas preocupações. “Vamos tentando dar o nosso melhor. Tivemos a sorte de apanhar na Irlanda um movimento muito forte pró-Palestina, conheço muitas pessoas que se esforçam diariamente pelos refugiados. Foi um orgulho ter trazido a seleção feminina da Palestina para um amigável em Dublin. Foi fantástico, ficámos muito satisfeitos por essa ação, também foi muito importante para o clube. Foi um momento histórico porque a seleção palestiniana nunca havia jogado na Europa. Foi algo influenciado pelos nossos fãs e apoiantes, que dedicaram inúmeras horas a voluntariado para apoiar esta iniciativa”, frisa. “É um equilíbrio importante que estas coisas tenham essa conjugação de forças com os voluntários. Outro exemplo é em torno do movimento LGBT. Fomos o primeiro clube a entrar numa marcha, o que resultou numa grande campanha. Já fizemos em três anos consecutivos e vamos para a quarta participação. Queremos dar às pessoas a capacidade de se envolverem e também fazerem coisas positivas pela comunidade e sociedade”, filtra o responsável do clube de Dublin.
Estádio como espaço de conforto para migrantes
Jimmy reflete sobre o arcaboiço do que já foi logrado. “Quando um clube se move para a esquerda ou para práticas sociais ou questões progressistas, é por uma corrente mais fanática, que vem de fora para dentro, como há o exemplo do Celtic. O nosso caminho é outro, foi apresentado pela Direção aos adeptos. O trabalho com os migrantes começa por um amigo que angariava dinheiro para um autocarro que fosse aos centros de refugiados de nível baixo e os trouxesse para locais com outro conforto. Eram pessoas que estavam a requerer alojamento e nós, a partir desse momento, decidimos colocar o nosso estádio no trajeto. O nosso grupo de ultras rapidamente abraçou a causa e tinha a sua tarja a cada jogo. Uma espécie de boas-vindas, em plena crise no Mediterrâneo”, recorda. “Contávamos com muita oposição, mas vimos um reforço dos apoiantes. A felicidade é vermos que os adeptos compreenderam o benefício das ações, conhecendo histórias de quem se afogou. Se cada um fizer a sua parte, somos um clube mais social. Foi notável que muitos se tenham curvado a este trabalho. Há divergências, mas, no geral, temos uma visão positiva sobre o que estamos a fazer”.
Futebol com ideias e ideais
As transformações no futebol que derrubaram a sua essência atormentam Jimmy Dignam. É o dito futebol moderno que se expressa dominante, pela sede de capital, que obriga a um esforço de resistência. O Bohemian lidera essa luta.
“É importante um clube ter uma herança cultural. Há um lema interessante no Barcelona, mas ficou excessivamente comercial. Os clubes já foram no passado veículos de muita coisa, do ciclismo a grupos de leitura. Um estádio pode significar muito, como esta abertura a concertos; é sempre um ótimo local para músicos e artistas. É uma forma de o futebol ser aberto a todas as pessoas, diferentes tipos de experiência, o que se aplica à arte. Os adeptos querem vir assistir a jogos, ver as suas equipas vencerem, isso é o essencial, mas depois apreciam uma matriz própria, um clube dono de si próprio e aí ficam mais dispostos a contribuir com o seu tempo e dinheiro”, evidencia, complementando. “As pessoas devem acreditar em ideais, quantas mais forem, outras vão contagiar. O reflexo será também o maior sucesso da equipa em campo. Estabelece-se uma hiperatividade absoluta, cresce a comercialização”, atenta, detetando um problema maligno. “O futebol nos seus primórdios era o jogo dos trabalhadores e juntavam-se as mulheres. Hoje, pelo seu preço, tornou-se inacessível para muitos, tem beneficiado menos e caído nas graças de certas elites. O objetivo de quase todos é ganhar o máximo dinheiro com o futebol, contrário à sua raiz. Devemos apostar em unir pessoas, oferecer um escape aos trabalhadores, dar-lhes uma oportunidade numa folga de trabalho para socializarem, praticarem desporto, como um tipo de recreação e pertença”, invoca, situando o eixo de ação. “É o sentido de comunidade que deve imperar, mas que tem vindo a ser destruído por múltiplos poderes. É procurando lutar contra estas tendências, que vamos puxando pela nossa força.”
Dignam está orgulhoso do caminho percorrido pelo Bohemian. “O clube cresceu muito por conta destas ações, deste envolvimento com os sócios. As pessoas reconhecem o nosso perfil, serve de motivação. Sabemos que são poucos os clubes que usam esta imagem e, por isso, o nosso exemplo atrai mais atenção do que deveria. Vamos esperar que mais clubes possam avançar nesta direção.”
Verbas solidárias e denúncias pela voz dos Fontaines D.C.
Bonita é a parceria com os Fontaines D.C., banda de Dublin, emergente no panorama rock alternativo, em que Carlos O’Connell, o guitarrista, é peça chave e criativa. O grupo irlandês que fechou a última edição do festival Paredes de Coura com o seu ativismo lírico contra a sobranceria inglesa embelezou a vocação do Bohemians FC. “Lançar a camisola de tributo à Palestina já era uma angariação de fundos para as crianças que jogam futebol na Cisjordânia. Virou uma coisa orgânica com os adeptos, no sentido de sermos um só, as pessoas podem vir até nós e liderar as suas ideias. Devemos dar o mérito à banda. A sensibilização vai continuar para ajudar a aumentar a consciencialização sobre o genocídio em Gaza”, atira Jimmy Dignam.
Elo de influência positivo
Perante tempos de alarmante belicismo e de democracias em cheque, Jimmy Dignam aborda o necessário inconformismo do futebol como incisiva arma de combate e consciencialização. “Tem as ferramentas certas para fazer com que o mundo seja um lugar justo. Já liderou movimentos contra o fascismo no Brasil, na Grécia, e tem sido um farol de esperança para os trabalhadores, semana após semana. Tem dado escape a tantas pessoas, é uma coisa linda”, vinca. “O futebol é um jogo muito acessível, basta apanhares uma bola e já o podes jogar e depois veio uma cultura que se desenvolveu e envolveu multidões. É um espetáculo completo, não envolve só quem está no campo, é sobre adeptos nas bancadas, todos se juntam para suportar o evento. Em nenhum outro desporto, os adeptos são tamanha parte integrante”, suporta Jimmy, acreditando que nunca se calará perante tempos desiguais. “Por isso pode ser um influenciador positivo de mudanças na sociedade. Queremos seguir neste caminho, é um orgulho que o nosso trabalho chegue a Portugal. Estamos ainda no início de uma viagem, ainda vem a remodelação do nosso estádio, desenvolvimento de campos de treino e do ginásio, mantendo um impacto positivo em áreas como o clima e os direitos LGBT”.