"Tenho de admitir que algumas pessoas pensem que estou gasto, velho e ultrapassado"
A dois dias do Natal passado orientou pela última vez o Académico de Viseu na II Liga e, com as portas à partida fechadas no nosso país, vê com naturalidade a ida para fora, até porque já foi feliz como emigrante
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Manuel Cajuda considera-se um felizardo pelas experiências que o futebol lhe proporcionou e garante que a profissão nunca o impediu de manter a vida familiar.
Um cancro na próstata afastou o treinador do banco do Académico de Viseu. Curado, depois de viver momentos difíceis, como confessa, mantém a vontade de treinar, provavelmente no estrangeiro
O Académico de Viseu foi o último clube onde trabalhou e teve de sair devido a um problema de saúde. Quer explicar?
-Sim, até porque é do meu interesse. Tive um cancro na próstata, ainda por cima não era nada bonzinho. Vi o mundo desabar nos primeiros três/quatro dias, confesso, mas, felizmente, as coisas correram pelo melhor e estou curado.
Só espera então um convite para voltar aos bancos?
-Sim, tudo correu de forma maravilhosa desde 5 de janeiro, quando fui operado. Não digo que sou um vencedor, porque o cancro é uma doença que quando vem para nos levar, leva mesmo. Tive sorte. Fui diagnosticado muito cedo, numa fase embrionária. Não sei o que me levou a ir fazer análises, a ir à procura de algo. Foi muito complicado no início, mas felizmente tive e tenho uma família que me apoiou muito, encontrei um médico excelente, o dr. Rui Prisco. Por opinião do médico e pelos exames que fiz, posso dizer que me livrei desta e quero voltar a trabalhar. Mantenho a mesma filosofia de vida, sempre fui um lutador e agora é só esperar uma oportunidade.
Já teve convites?
-Tive dois contactos para ir para o estrangeiro. Vamos ver o que sucede.
Vê as portas fechadas em Portugal?
-Sim, aqui as portas estão fechadas; os clubes têm treinadores e não desejo mal a nenhum dos meus colegas. Por outro lado, tenho de admitir que algumas pessoas pensem que estou gasto, velho e ultrapassado. Eu só posso dizer que não me sinto nenhuma dessas coisas. E como nos últimos dez anos vivi coisas de enorme riqueza, especialmente em termos culturais, quando estive no estrangeiro, esta é a hipótese mais forte.
Teve boas experiências?
-Sim. Não deixei, nem nunca vou deixar de ser católico, mas já fiz o Ramadão e fui rezar com os jogadores em países islâmicos. Vivi num país budista, a Tailândia, e fiquei maravilhado. Estive na China, que foi qualquer coisa de fascinante, comecei no Egito, um país de cultura milenar. E tive a felicidade de viver cerca de quatro anos nos Emirados Árabes Unidos, nomeadamente no Dubai. Vivi coisas que me modificaram para melhor - são coisas que vale a pena repetir.
A qualidade de vida que encontrou nesses países é importante?
-Eu tive o privilégio de ser um emigrante de luxo. Quando se diz que um treinador tem sempre de ter as malas prontas, eu digo ainda bem, porque o futebol proporcionou-me conhecer tantas coisas... Quando dizem que é uma vida de saltimbanco, não é verdade, quando dizem que afasta o treinador da família, não é verdade, porque tive sempre o cuidado de levar a minha família comigo e tenho uma regra de ouro: o treinador nunca entra em casa. Isto porque a minha mulher do que precisa em casa é de um marido, e os meus filhos de um pai.
Mas o dinheiro é um fator importante...
-Não vou estar com rodeios, a parte económica é importante. Ganha-se mais lá fora do que em Portugal. Milhões de portugueses emigraram à procura de melhores condições, e com os treinadores não é diferente. Nunca ganhei, nem vou ganhar, o mesmo que o José Mourinho, mas ganha-se muito mais que cá. E há também qualidade de vida e conforto. Nos Emirados, por exemplo, tinha uma cláusula no contrato que não permitia que viajasse de avião em classe turística, apenas em primeira classe. Não foi um pedido meu, foram eles a impor. No Dubai, vivi sempre em hotéis de cinco estrelas, com enorme luxo, com grandes carros. O Dubai e os Emirados fazem a diferença pelo luxo.
Cajuda conta quatro prooções à I Liga e tem ainda no currículo a qualificação de oito clubes para a Europa
O técnico búlgaro Hristo Mladenov escolheu-o para adjunto e o técnico lembra como Mészáros o ensinou a treinar guarda-redes.
Como se deu a transição de jogador para treinador no Farense?
-O Fernando Barata, o presidente e alguém a quem devo muito, chamou-me para uma reunião e disse-me: "Manel, a partir de amanhã vais ser adjunto deste senhor." Esse senhor era o Hristo Mladenov, ex-selecionador da Bulgária, e tinha sido o próprio a escolher-me para adjunto. "Como é que ele me escolhe se não o conheço de lado nenhum?", pergunto eu. Soube então que o Mladenov estava já há 20 dias a ver os treinos e via em mim qualidades de liderança. Eu resisti e ainda fiquei dez meses como jogador também.
E depois com ele?
-Recebi do Mladenov grandes lições, coisas que nenhuma universidade vai ensinar. Tive dois anos de um curso prático. No primeiro treino, mandou-me sentar e disse: "Escreve e depois faz isto, isto e isto e agora vai treinar." Mas eu não sabia treinar, as noções de comando que tinha eram do exército, que não é bem a mesma coisa. Mas ele insistiu: "Vai treinar, dei-te um papel, depois do treino falamos do que está bem e mal." Durante dois anos foi assim e aprendi imenso.
"Aprendi com os meus colegas, são lições de vida"
E como se safou nesses primeiros treinos?
-Olhe, na primeira vez que fiz um treino de guarda-redes, vou só treinar o Mészáros, que tinha jogado três Mundiais, que foi campeão no Sporting. No primeiro treino dele no Farense, a bancada estava cheia só para o ver... Eram ele, o Peres, ainda hoje um grande amigo, e o Almeida. Até chegar perto deles, eu era um homem perdido pelo nome do Mészáros. Mas tive humildade e inteligência. Sentei-me em cima da bola na marca do penálti, pedi-lhes que se sentassem também e depois virei-me para o Mészáros: "Não sei treinar guarda-redes."
E ele diz-me naquele seu português: "Não te preocupes, Manel. Se manda bater com cabeça no poste, eu bato cabeça no poste; se manda cair, eu caio. Mas digo-te uma coisa: se tu queres, todos os dias eu ensino a ti treino de guarda-redes." E assim foi, durante seis meses, antes dos treinos, o Mészáros ensinava-me como dar o treino e passado esse tempo eu já era um excelente treinador de guarda-redes. Não havia redes sociais, mas aprendi com os meus colegas - isto são lições de vida.