ENTREVISTA (Parte 1) - Na primeira grande entrevista depois da dobradinha, o treinador campeão falou de futebol jogado sem se desviar das balas, mas reclamando também os méritos que, na sua opinião, ficaram por reconhecer
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Uma hora e meia de conversa com Sérgio Conceição só se consegue falando do que ele gosta. Nesta entrevista em duas partes, o futebol sai virado do avesso, da tática ao mercado, do mercado à Europa que foge dos portugueses e do comentário à ciência do treino.
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Questionar a qualidade de uma equipa que chegou aos quartos de final da Liga dos Campeões e tem dois títulos e uma taça em três anos é complicado, mas admite que o seu FC Porto nunca foi tão impactante como na primeira época?
-Sinceramente, não vejo as coisas dessa forma. Tenho de analisar os diferentes momentos destas três épocas. No primeiro ano, a equipa teve um comportamento fantástico, mudando o paradigma, porque passámos a jogar de forma diferente daquela a que o FC Porto nos habituou durante muitos anos. Foi uma surpresa nesse sentido, na forma como jogávamos quando tínhamos a bola e também quando não a tínhamos. A capacidade de sermos pressionantes, de condicionar o adversário na sua primeira fase de construção, era muito grande e isso foi uma surpresa para toda a gente. Acho que mais de metade dos golos que fizemos foram na sequência de recuperações no meio-campo ofensivo. No segundo foi um pouco diferente, havendo uma ou outra mudança e percebendo que os adversários nos conheciam melhor. Tentámos criar algumas nuances no nosso jogo e fomos competitivos até ao fim. Não podemos esquecer que foram três épocas em que ultrapassámos sempre os 80 pontos. Neste último ano, tivemos algumas dificuldades no início que nos custaram a entrada a Liga dos Campeões, onde estamos habituar a estar. Houve muita gente a chegar em cima da hora, o que vai entroncar naquilo no que eu acho sobre o facto de o futebol português estar cada vez pior, enfrentando uma "décalage" para o futebol das equipas das principais ligas cada vez maior. Tivemos esse dissabor de não ter corrido tão bem a Europa, mas criando um grupo de certa forma consistente e melhorando gradualmente a nossa equipa. Conseguimos conquistar dois títulos. Houve diferentes momentos nas três épocas, sempre com uma forma de estar que acho importante: de grande exigência, rigor, determinação e ambição no jogo e no dia a dia. Isso foi determinante nestes três anos que considero de sucesso.
"No primeiro ano, a equipa teve um comportamento fantástico, mudando o paradigma, porque passámos a jogar de forma diferente"
Com o passar do tempo, começaram a pesar mais as limitações técnicas dos avançados do que a superioridade física daquela época inicial?
-O futebol nunca é só uma coisa. Muitas vezes, na minha opinião, as pessoas estão enganadas. Acham uma forma espetacular de jogar quem tem 20 ou 30 por cento de posse de bola na sua linha defensiva. Eu sou um treinador diferente, o que não quer dizer que não goste de ter bola. Gosto de a ter de uma forma mais objetiva, de olhos na baliza do adversário. O impacto físico no jogo é extremamente importante no futebol moderno, cada vez mais se nota a intensidade e velocidade das equipas que têm sucesso. A capacidade que têm de provocar o erro no adversário - e estou a lembrar-me de alguns adversários que defrontámos na Europa. Quando olhámos para uma equipa, não podemos catalogá-la pelo que nos chama mais a atenção. Fomos a equipa com maior percentagem de posse de bola na Liga e isto quer dizer alguma coisa. Mas é uma posse objetiva. Em diferentes momentos sabemos ficar com bola para conseguir desequilibrar o adversário na sua missão defensiva e noutros não precisámos dessa posse para chegar à baliza. Quando os adversários nos conhecem melhor e existe mais atenção para esse impacto físico que o FC Porto tem, precisamos de meter outras nuances no jogo. Fomos inteligentes em provocar isso.
Nessa procura pela objetividade, como treinador, dá-lhe mais gozo um golo como o de Alvalade, com um passe de 50 metros do Corona, ou como aquele ao Moreirense em que a bola passou por nove jogadores?
-É mais difícil o de Alvalade, porque vai ao encontro do que trabalhamos aqui no treino, ao que é pedido: trabalhar o detalhe. Depois, sobram dez por cento para perceber onde é que o adversário tem fragilidades e como é que nós, com os jogadores disponíveis, podemos ferir estrategicamente o adversário. Esse golo é um bom exemplo, foi trabalhado muitas vezes em treino para aproveitar o tal espaço central/lateral que sabíamos ser uma das fragilidades do Sporting.
"Temos muitos golos de esquemas táticos, as bolas paradas, com várias combinações, e raramente o nosso laboratório foi realçado"
Esta época, mais do que nas outras, o FC Porto tentou várias vezes jogar um futebol mais ligado, mas percebeu-se que os médios-ofensivos e avançados como Soares e Marega jogam em frequências demasiado diferentes para isso. Concorda?
-Isso tem a ver com as formas que encontramos para ter resultados. Sou pragmático, mas gosto da beleza do futebol. Basta ver golos que fizemos nestes três anos. Há alguns de uma qualidade fabulosa e golos feitos de uma forma mais elaborada, mais cuidada, outra de forma mais direta. Temos muitos golos de esquemas táticos, as bolas paradas, com várias combinações, e raramente o nosso laboratório foi realçado. Lembro-me de que, há alguns anos, no Benfica - e estou a falar no Benfica não é por provincianismo ou pequenez - era muito realçado esse facto.
No início do primeiro ano do Sérgio, uma das diferenças que havia para o Benfica do Rui Vitória era justamente a superioridade do Benfica nas bolas paradas.
-Sim, sim. Recordo-me de tudo o que foi dito e escrito e não foi realçada a beleza de lances que nós trabalhámos. Dedico unidades de treino a essas situações de bolas paradas, ofensivas e defensivas, e não foi por acaso que fomos a defesa menos batida e o melhor ataque. Temos surpreendido o adversário. Quando estão à espera de uma combinação, somos muito fortes a atacar a bola e a bater, porque é preciso haver essa qualidade de quem bate as bolas paradas. Temos uma equipa que não é só grande em altura. O Corona fez um golo de cabeça ao primeiro poste com a Académica e isso é fruto do trabalho minucioso. Temos de ser inteligentes e criativos na forma de treinar para estimular ao máximo esta malta. Um dos segredos é ter sempre o grupo no "red line", altamente motivado. Depois de ganharmos neste ano dois títulos importantes para o clube, sinto que eles estão exatamente como quando entrei aqui no primeiro ano, com uma vontade enorme de reverter o que foram os anos anteriores. Vi o grupo agora com o mesmo comportamento, ambicioso, determinado, com uma vontade enorme de aprender. Entre estes jogos de preparação, trabalhámos um bocado essas situações de bola parada e eles percebem o que queremos e executam muito melhor. É esse trabalho e o acreditar naquilo que pode ser determinante para se ganhar jogos. Depois, é preciso ter qualidade para pôr os esquemas em prática.
Só um dos jogadores que contratou não veio substituir alguém que partiu. Foi o Zé Luís. O que esperava dele?
-Conhecia o Zé Luís de trabalhar com ele no Braga. Entretanto, foi vendido para a Rússia e acompanhei a evolução dele. Achei que era um jogador que encaixava, assim como a Direção também achou e por isso é que veio. Não foi contratado para jogar no meu quintal, nem dou a indicação ou digo que sim a um determinado jogador porque vamos para a Mealhada jogar com os meus filhos. O clube decidiu contratar e as coisas fazem-se em conjunto. Com o aval do treinador - pagam-me para isso - e do presidente, que trata da parte financeira. Desenganem-se, porque não há exigência deste ou daquele. Pode haver, sim, um jogador em quem acreditamos. Muitas vezes essas contratações não são possíveis porque se metem outros clubes no meio, porque o jogador pede dinheiro a mais, porque um determinado clube à última hora elevou as pretensões, mas isso são as negociações. Cada vez mais, o futebol português deve ser inteligente e criativo nos jogadores que contrata.
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E ao contrário, o Sérgio já pediu para não vender algum jogador?
-Isso faz parte do planeamento da época. Após a final da Taça, fiquei mais três dias aqui a resumir o que se tinha passado na época para passar ao presidente, a planear a pré-temporada, a construção do plantel e a forma como vamos iniciar esta época atípica, com uma preparação mais curta do que o habitual. O ano desportivo teve 13 meses diferentes do que estávamos habituados e há coisas a falar e reuniões a fazer para continuarmos a ser competitivos como eu quero. O presidente sabe dessa minha exigência, que também é dele. É o mais titulado do mundo e quer ganhar tanto como eu. Nesse sentido, estou à vontade, mas é difícil pelo contexto de vender e de comprar.