TEMA - O charme que inspira o futebol profissional tanto esconde como escancara realidades insólitas, como são as sucessivas trocas de treinadores. Processam-se à luz da lei, mas retiram dignidade aos clubes e aos profissionais. Já há quem defenda a regulação das famosas "chicotadas psicológicas".
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Regular os despedimentos e as trocas de treinadores é uma opção que começa a ganhar simpatizantes em Portugal.
A anterior diretora executiva coordenadora da Liga, Sónia Carneiro, desafiou, na passada semana, nas páginas de O JOGO, mudanças estruturais para regular as "chicotadas psicológicas": "Encartados, ou nem por isso, os treinadores portugueses, cá dentro ou além-fronteiras, têm demonstrado uma competência para além do expectável face à instabilidade desta profissão, sendo tempo de refletir se o esteio duma equipa pode ser assim descartável sem consequências regulamentares, ao contrário daquilo que já acontece em outros países onde a existência de limitações normativas já são uma realidade".
A prática de substituir, de forma incontinente, quem comanda uma equipa veio, de facto, para ficar e a época atual não deixa margem para dúvidas, tendo-se verificado já 12 mudanças na principal liga e 14 em clubes do segundo escalão profissional. Como resultados paradigmáticos dessa voragem, Petit arrancou ao comando do Belenenses e agora está ao serviço do Boavista, enquanto Lito Vidigal não foi além de cinco jornadas no Moreirense, clube que já vai no terceiro treinador. Na II Liga, deu-se o (recente) caso de Pedro Ribeiro trocar o Penafiel pelo Ac. Viseu, estreando-se ao comando dos beirões, precisamente, frente à anterior equipa. Semelhante flagelo espalha-se pela Europa e até já levou Espanha e Itália a determinarem que um treinador só pode abraçar, por época, um projeto no escalão superior - saindo, só está autorizado a treinar em escalões inferiores. No Brasil, a CBF apostou noutra estratégia ao proibir que cada clube vá além de duas trocas de treinador por época. A medida existe há apenas um ano e em Portugal pondera-se um pouco de tudo na Liga, ainda que num plano informal, fora de assembleias gerais, apurou O JOGO.
Por um lado, há quem receie que uma regulação possa colidir com a Constituição. José Pereira, presidente da Associação Nacional de Treinadores de Futebol (ANTF), coloca várias reticências /ver texto abaixo), mas admite que é tema e que deve ser debatido por todos os parceiros da modalidade. Por outro lado, há quem veja nisso um importante aliado das leis do trabalho, como é o caso do advogado João Martins. "Se regularmos no sentido de evitar que um clube troque de treinador por diversas vezes na mesma época, fará todo o sentido, isto na perspetiva de proteger os que estão a trabalhar. Aí não estaremos a violar o direito ao trabalho, estaremos antes a proteger a estabilidade contratual de quem trabalha", defende o jurista e também antigo diretor executivo do organismo que gere o futebol profissional. Por entre campanhas recheadas de êxitos e despedimentos frustrantes, O treinador Manuel Machado declara-se "a favor de uma certa regulação" e não descarta "os exemplos de Itália e Espanha". "São hipóteses a considerar. A FPF, a Liga, a Associação Nacional de Treinadores de Futebol e o Estado devem refletir e procurar soluções que minimizem esse tipo de práticas. Não devemos é copiar só por copiar. Devemos encontrar uma solução ajustada à nossa realidade, porque a lei geral do trabalho não pode ser ofendida. O futebol não vive num país à parte. É por isso que o Estado tem de intervir também", alerta, lamentando que os treinadores se tenham transformado em "peças de mercadoria". "Perderam estatuto. São utilizados e descartados com grande facilidade. O Lito Vidigal, por exemplo, foi despedido pelo Moreirense ao fim de poucos jogos", recorda.
Dispensado precisamente pelo clube de Moreira de Cónegos (foi o primeiro), João Henriques é outro treinador desencantado. "Não se pensa a longo prazo, só existem os resultados. Tem de haver de facto uma regulação. Nenhuma empresa do mundo tem sucesso quando se trocam sucessivamente os principais funcionários. Quando estava no Santa Clara, a trabalhar há duas épocas consecutivas, já dizia que o nosso sucesso se devia muito a uma continuidade de um projeto com cabeça, tronco e membros", recorda, admitindo que "os modelos de Espanha e Itália" podem ser viáveis. "Experimentando-os, poderemos ter conclusões", propõe. Até lá, continuará a imperar aquilo que Manuel Machado denomina de "selvajaria", com inúmeros candidatos a contentarem-se com "salários baixos". "Se os contratos fossem mais elevados, as pessoas pensavam duas vezes antes de despedir", avalia Manuel Machado, dando conta de uma "multiplicação de cursos de treinadores nos últimos 15 anos" sem se equacionar "uma proporcionalidade" em relação ao que o mercado poderia absorver.
Três questões a José Pereira, presidente da Associação Nacional de Treinadores de Futebol
"Limitações vão contra a Constituição"
1 A regra de um treinador só poder trabalhar num clube do principal escalão por época, como se verifica em Espanha e Itália, teria viabilidade em Portugal?
-Esse tema deve ser discutido por todos: FPF, Liga, dirigentes, treinadores e até jogadores. Ressalvo, porém, isto: ninguém pode ser proibido de trabalhar. Trabalhar é um direito constitucional e, se lá fora há essa restrição, é porque as constituições desses países permitem, sendo diferentes da nossa. Essa limitação não faria sentido em Portugal porque iria colidir com a nossa lei do trabalho. Teria de mudar a constituição.
2 Há forma de impedir os despedimentos sucessivos de treinadores?
-É tão legal que um clube despeça um treinador como um treinador despedir-se do clube. Depois funcionam as indemnizações. O problema é que muitos treinadores não são indemnizados devidamente porque prescindem de direitos. A única coisa que a ANTF pode exigir é que os clubes tenham treinadores devidamente certificados.
3 O contrato coletivo de trabalho acordado entre a Liga e a ANTF requer alguma atualização?
-Mantém-se ajustado à realidade e está em conformidade com o código geral do trabalho. Há liberdade para contratar e ser contratado. Na maior parte dos casos, são as direções dos clubes a despedir, mas alguns treinadores também saem por iniciativa própria. Em regra, o vínculo desfaz-se mediante um acordo para rescisão; quando isso não acontece, o caso pode ser dirimido em tribunal, com os clubes a serem normalmente penalizados.