O tema está na ordem do dia. O comportamento dos adeptos nas várias modalidades está sob intenso escrutínio. As autoridades públicas e desportivas querem erradicar os insultos mais agressivos e o apelo ao fim das intolerâncias está escudado na legislação que baliza os crimes de intolerância: racismo, xenofobia, homofobia, etc.
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Marega, ao abandonar o jogo em Guimarães, há oito dias, mexeu com as consciências e colocou o debate onde ele há muito devia estar: os comportamentos nos estádios de futebol ultrapassam - e muito - os limites da rivalidade desportiva.
O racismo, um crime punido por lei, sempre se fez sentir nas bancadas dos estádios e pavilhões
O racismo, um crime punido por lei, sempre se fez sentir nas bancadas dos estádios e pavilhões, pois o futebol não é caso único. Marega foi exemplar porque o jogador do FC Porto teve a coragem e a força que outros, há muito, deviam ter tido.
Mas o racismo não é a única intolerância dos insultos típicos, considerado um hábito, banalizado pela abordagem permissiva que se foi fazendo, ao longo dos tempos, aos comportamentos dos adeptos.
Existe, há já alguns anos (desde 2009), legislação para contrariar esses comportamentos, balizando-os como intolerâncias a prevenir e a punir: a Lei de Segurança e Combate ao Racismo, à Xenofobia e à Intolerância nos Espetáculos Desportivos, que conheceu nova redação e ajustes em setembro do ano passado.
Mas a aplicabilidade do articulado legislativo está a ser, por estes dias, posto à prova. Desde logo, apurou O JOGO junto de fonte da Liga, há uma preocupação prioritária do organismo que tutela o futebol profissional para o que aparenta ser uma falha da lei: a verificação e monitorização dos adeptos punidos, uma primeira vez, com a sanção de interdição da sua comparência nos estádios.
Conforme a atual legislação, compete aos clubes impedir os adeptos punidos de entrar nos recintos
É que, conforme a atual legislação, compete aos clubes impedir os adeptos punidos de entrar nos recintos, ao contrário do que acontece quando se trata de um infrator reincidente, que passa, também, a estar obrigado a apresentar-se à Polícia aquando da realização dos jogos da equipa da qual é adepto.
Ou seja, imagine-se um adepto do clube X que é punido apenas com interdição e ter que ser o emblema Y a impedir que aquele adepto adquira o ingresso para a receção ao clube X. Isto, para os clubes, está a ser um grande problema ao nível da organização e segurança.
Porém, enquanto as autoridades, públicas e desportivas, debatem a sua aplicabilidade, importa ao adepto, em consciência, perceber que intolerâncias são essas e o limite criminal da verborreia que, infelizmente, ainda grassa nas bancadas de todo o país, nas várias modalidades e até nos vários escalões, desde os infantis.
São criminalmente puníveis o racismo, xenofobia, homofobia, intolerância religiosa e desigualdade de género
Assim, são criminalmente puníveis o racismo (discriminação com base na cor de pele e etnia), xenofobia (nacionalidade e comunidade), homofobia (com base na orientação sexual), intolerância religiosa e desigualdade de género.
Por outro lado, como refere o sociólogo João Nuno Coelho, o exemplo de Marega gerou "uma oportunidade única para tomar medidas no sentido da iniciar uma real mudança de mentalidades em termos de comportamentos discriminatórios, sejam eles racistas, xenófobos, sexistas ou outros" (ver textos ao lado).
OUTRAS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO E ÓDIO NO DESPORTO
XENOFOBIA
Anda de mãos dadas com o racismo e com conflitos políticos que abalaram e ainda abalaram o mundo.
O sul coreano Heung-min Son, do Tottenham, será uma das figuras asiáticas mais mediáticas do mundo e, por conseguinte, no centro de diversos gestos e cânticos xenófobos em estádios redes sociais. O avançado admitiu que sofre isso na pele desde que chegou à Premier League, em 2015 e as queixas e condenações multiplicam-se.
Chegou ao ponto de um adepto de 13 anos do Burnley ter sido expulso do estádio dos spurs depois de ter feito gestos insultuosos e discriminatórios direcionados a Son.
Também Edwin Cardona, num jogo entre as seleções de Colômbia e Coreia do Sul, em março de 2019, fez um gesto que lhe valeu cinco jogos de castigo, pese o pedido de desculpas.
Miralem Pjanic, médio da Juventus, ouviu cânticos de "zingaro" - cigano, em português - por uma parte significativa dos adeptos do Brescia, que tiveram de "engolir" o golo do triunfo marcado pelo jogador da Bósnia-Herzegovina.
Quando as seleções dos Balcãs medem forças, o risco é máximo e os incidentes sucedem-se, embalados pelo nacionalismo. Em 2014, o Sérvia-Albânia não chegou ao fim depois de um drone com a bandeira da "Grande Albânia" ter sobrevoado o relvado, no que culminou com cenas de pancadaria entre jogadores e adeptos. A UEFA decretou o triunfo por 3-0 da Sérvia, mas retirou-lhe três pontos.
Ainda nos Balcãs, uma cruz suástica desenhada num relvado da Croácia, antes da visita da Itália, chocou a Europa. Os croatas foram castigados com a dedução de um ponto e dois jogos à porta fechada.
Em dezembro de 2019, Sayed Baker, defesa da seleção do Barém, foi suspenso por dez partidas pela FIFA, que entretanto agravou os castigos. O gesto foi direcionado aos adeptos da formação de Hong Kong.
Em 2014, os Urawa Red Diamonds tiveram de jogar uma partida à porta fechada depois de os seus adeptos terem exibido uma faixa com a seguinte inscrição: "Só japoneses".
INTOLERÂNCIA RELIGIOSA
Na Europa, a Premier League é uma das competições que mais problemas tem enfrentado com o antissemitismo, em especial o Tottenham, que tem uma percentagem significativa de adeptos (e até dirigentes) judeus ou de origem judaica. Em resposta aos cânticos e a outras manifestações, os clubes têm desenvolvido diversas campanhas de sensibilização e não hesitam em punir os infratores.
Em Jerusalém, o Beitar é conhecido pela intolerância para com muçulmanos e arábes, num movimento encabeçado pela "La Familia", a claque. Faixas ou cânticos a desejar "morte aos árabes" eram uma constante, até à recente chegada de Moshe Hogeg à presidência do clube. "Tenho absolutamente zero tolerância para com o racismo.
Se fizeres um comentário racista, vou processar-te em um milhão de euros", sublinhou o dirigente à BBC. As cartas aos adeptos que estavam a "prejudicar a imagem do clube" começaram a ser distribuídas e o clima começou a mudar.
Em Liverpool, o "efeito Salah" já foi alvo de diversos estudos. Um deles, publicado pelo Departamento de Ciência Política da Universidade de Stanford, aponta para uma queda de 18,9% dos crimes de ódio contra muçulmanos na região de Merseyside.
Os tweets dos adeptos do Liverpool com referências negativas a muçulmanos também caíram de 7,3% para 3,8%, e há diversos testemunhos a admitir que passaram a ser alvo de menos demonstrações de intolerância e preconceito após a primeira época de Mohamed Salah nos reds.
Esta situação contrasta com os cânticos "Salah is a bomber" (Salah é um bombista) que por vezes são direcionados ao atacante egípcio.
DESIGUALDADE DE GÉNERO
A corrente feminista que tem ganho força nos últimos tempos não podia deixar de chegar ao desporto. A seleção feminina de futebol dos EUA, uma das melhores do planeta e quatro vezes campeã do mundo, encabeçou a campanha pela igualdade salarial.
Ada Hegerberg, a primeira mulher a receber a Bola de Ouro, boicotou a presença na seleção norueguesa no Mundial de 2018, desagradada com as condições proporcionadas pela federação.
Em Espanha, depois de longas e complicadas negociações, foi finalmente assinado o contrato coletivo de trabalho que permite às futebolistas daquele país o estatuto de profissionais.
Outra das grandes lutas do futebol feminino continua a ser o combate ao preconceito e às pessoas que entendem que as mulheres não são capazes de praticar a modalidade e que fez a Federação Portuguesa de Futebol, por exemplo, lançar a campanha "Responde em Campo".
O fosso salarial entre homens e mulheres também é um constante debate no ténis. Neste momento, os quatro principais torneios, os do chamado "Grand Slam" (Open dos EUA, Open da Austrália, Roland Garros e Wimbledon) assumem a política de pagar o mesmo a homens e mulheres.
HOMOFOBIA
A temática da homofobia começa desde logo com o tabu em torno da homossexualidade no desporto. São escassos os exemplos de atletas ou outros intervenientes no jogo que se assumem homossexuais. Parte significativa da explicação está relacionada com o preconceito - basta ver que entre os inúmeros insultos que são atirados das bancadas estão vários exemplos de expressões que rebaixam e humilham homossexuais.
Esta época, a liga francesa lançou uma campanha anti-homofobia e deu carta branca aos árbitros para interromperem os jogos, no chamado protocolo dos três passos. Ainda o primeiro mês de competição não tinha terminado e já havia 20 relatos de cânticos e mensagens homofóbicas, com dois jogos a terem de ser interrompidos. Nice-Marselha e Metz-PSG.
A Premier League também lançou uma campanha a favor dos direitos LGBT, lado a lado com o campeonato de râguebi: a Rainbow Laces. O uso de cordões de chuteiras e braçadeiras com as cores do arco-íris fez parte da iniciativa. No entanto, há registo de queixas e detenções de adeptos que tiveram comportamentos homofóbicos nos estádios.
No ténis, Martina Navratilova e John McEnroe, na última edição do Open da Austrália, assumiram um protesto para que a Margaret Court Arena, terceiro maior recinto da modalidade naquele país, passasse a ser chamado de Evonne Goolagong Arena.
Margaret Court é uma das maiores tenistas da história da Austrália, mas tem no currículo várias declarações de oposição aos direitos LGBT, como ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo. Também chegou a afirmar que a África do Sul, em pleno Apartheid, tinha a questão racial "muito mais bem organizada do que qualquer outro país".
Por outro lado, Evonne Goolagong, australiana de origem aborígene, foi também uma das melhores tenistas do seu país e foi a primeira mulher a ser campeã num "major" após ser mãe, na era Open.
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3 QUESTÕES A JOÃO NUNO COELHO
"Oportunidade única para tomar medidas"
1 - O caso Marega terá impacto na sociedade portuguesa?
-Sim, o facto de Marega ter decidido abandonar o jogo fez toda a diferença, porque chamou as atenções, até a nível internacional. Muitas pessoas, como "opinion makers" influentes, que raramente falam de futebol, fizeram-no de forma contundente, e com o impacto das redes sociais tudo tomou proporções nunca vistas em Portugal.
É uma oportunidade única para tomar medidas no sentido de uma real mudança de mentalidades em termos de comportamentos discriminatórios, sejam racistas, xenófobos, sexistas ou outros. Principalmente porque situações deste tipo são muito mais habituais do que se pensa e não estão limitadas a zonas do país ou aos estádios. Se queremos uma comunidade inclusiva e solidária, o futebol também tem que o ser.
2 - Os clubes têm responsabilidades na conduta das suas massas adeptas?
-Para mim, que acredito seriamente na relação com a comunidade como o aspeto mais importante nos clubes, é óbvio que os clubes têm que ter profundas responsabilidades sociais, entre as quais o comportamento dos adeptos. Devem promover os valores e princípios dominantes na sociedade, que caracterizem também a sua identidade, assim como tudo fazer para que sejam respeitados e praticados nos seus recintos.
É fundamental que possam contar com a ajuda do Estado porque não é uma tarefa fácil quando se tem milhares de sócios, adeptos e espetadores. Só assim os clubes poderão implementar medidas, muitas vezes duras, para manter prevaricadores fora dos estádios ou dos pavilhões.
3 - Deve a justiça desportiva ser mais penalizadora, subtraindo pontos?
-Era preferível não chegar a esse ponto. Mas se houver escalada de violência, física e verbal, podemos ter que ir por aí. Os clubes e as autoridades deviam criar mecanismos para garantirem que certos comportamentos de violência verbal e física - incluindo os discriminatórios - sejam punidos com a proibição de presença nos espetáculos desportivos de quem insista em não ter uma conduta socialmente aceitável, como aconteceu na Inglaterra, no final das décadas de 80 e 90, quando as autoridades, em articulação com os clubes, conseguiram controlar o hooliganismo através do afastamento dos adeptos mais violentos dos estádios, obrigando a que se apresentassem em esquadras à hora dos jogos.
Devem promover-se campanhas mais eficazes - principalmente juntos dos jovens - para criar e desenvolver a cultura desportiva, que mais não é do que uma dimensão da cultura de cidadania e civismo.