O futebol na Ucrânia e a guerra: "Como poderei esquecer aquilo que os meus filhos tiveram de suportar?"
Vlad Vashchuk, antigo capitão da Ucrânia e do Dinamo Kiev, fez para o O JOGO o relato de um país dizimado por um ano de guerra
Corpo do artigo
O antigo central Vlad Vashchuk, hoje com 48 anos, não tem poupado esforços em missões humanitárias e jogos solidários dentro do seu pais, depois de ter sido vítima de verdadeiro filme de terror nos primeiros tempos da guerra iniciada por Putin em solo ucraniano. Lenda da seleção e do Dínamo de Kiev, Vashchuk desdobrou-se em esforços numa fuga acelerada de Gostomel, onde reside, a 15 quilómetros da capital, vendo um rasto de destruição impensável à sua volta. Passou por suores frios, pânico, desespero e muito medo, enquanto não vislumbrava uma escapatória por um corredor humanitário. Viveu 15 dias numa cave da sua casa, sem energia, às escuras, acompanhado dos filhos com escassos mantimentos e bens alimentares. Foram dias de fome, terror e tortura perante os rugidos das bombas que entravam no solo de Gostomel. O homem que foi por 63 vezes internacional ucraniano faz agora o apanhado do que se seguiu, isto numa altura que a guerra e calamidade associada já se prolongam há mais de um ano.
"Apesar da situação extremamente difícil do país, nós, não vamos deixar de acreditar no melhor, na nossa vitória. A maior parte da população luta pela sobrevivência, já que a economia, devido aos ataques russos ao sistema energético do país, foi praticamente destruída. Muitas pessoas ficaram sem trabalho, sem dinheiro e sem casa. Mas os ucranianos são obstinados, não vão deixar de lutar pelo seu futuro e pelo futuro dos seus filhos. Estamos cheios de fé", apressa-se a dizer neste exclusivo com o O JOGO. Vashchuk leva-nos ainda pela viagem mais pessoal e íntima, a sua história de sobrevivência em Gostomel e os contornos do seu regresso a casa.
"A guerra teve um impacto extremamente negativo no futebol ucraniano mas, mesmo assim, o campeonato tem-se mantido. Não há espetadores, para não os colocar em perigo, há jogos interrompidos por avisos de ataques aéreos, mas os jogos realizam-se e os jogadores seguem com a sua atividade"
"Acabei por voltar para a minha cidade e para a minha casa. Felizmente não foi destruída nos bombardeamento, mas os militarem russos decidiram habitá-la. Entraram dois veículos blindados no meu terreno, os soldados roubaram ou vandalizaram tudo o que encontraram, beberam o álcool que lá estava, transformaram a casa num celeiro. Passei duas semanas a limpá-la, dois terços das coisas tive que deitar fora. Muitas outras foram roubadas, desaparafusam a máquina de lavar mas não a conseguiram transportar. Tenho fotos, que não quero mostrar, absolutamente terríveis", demonstra o antigo defensor ucraniano, tocado por tantas aflições e sem perceção de todos os reais custos de um conflito desta escala.
16135236
"Há um stress que se apoderou de todos, há o temer o futuro. Não sabemos ao certo o dano psicológico que foi infligido aos ucranianos. Muitos fugiram para a Europa contra a sua vontade, outros perderam a casa, muitos perderam família, perderam-se filhos e perderam-se amigos. Muitos negócios e empregos foram arruinados. ´W impossível saber o significado disto tudo agora! A única certeza é que nunca seremos capazes de esquecer ou perdoar. Como poderei esquecer aquilo que os meus filhos tiveram de suportar durante 15 dias? Impossível!", esclarece, numa raiva difícil de conter.
"Vou lembrar a minha cidade ocupada. Eu e os meus filhos debaixo de intensos bombardeamentos, por vezes 15 horas. Vou lembrar o corredor humanitário pelo qual saímos, os feridos no hospital, os refugiados, as casas destruídas. Terei lembranças que nunca se apagarão da memória", atira cáustico, entre desabafos cristalinos.
"Não tenho ressentimentos com o ocidente, apenas gratidão. É inestimável entendermos que não estamos sozinhos em período tão crítico. Muitos receberam as nossas mulheres e as nossas crianças, deram-lhes proteção e abrigo. Houve uma assistência militar e uma ajuda humanitária. Quanto à Rússia ainda estou boquiaberto como foi possível semelhante barbaridade no século XX1. É uma catástrofe horrível e um crime contra a humanidade", descreve Vashchuk, explicando o seu envolvimento no amparo a muitos compatriotas (as).
"Faço trabalo voluntário, ajuda as nossas forças armadas, estou engajado em projetos de caridade em prol da sociedade. Estou a dar tudo de mim para poder aproximar a Ucrãnia de uma vitória", classifica.
"A Rússia não vai enterrar o nosso futebol"
Quando se luta pela casa e pela vida, desporto cai para segundo plano mas o tempo passado já fornece dados sobre o travão ao desenvolvimento dos jovens.
Vlad Vashchuk tem uma história marcante dentro do futebol ucraniano, ao lado de Shovkovsky, Rebrov ou Shevchenko. Muito ligado ao trabalho de academias, a cimentar a bases do futuro, o outrora defesa avança a primeira radiografia
"A guerra teve um impacto extremamente negativo no futebol ucraniano mas, mesmo assim, o campeonato tem-se mantido. Não há espetadores, para não os colocar em perigo, há jogos interrompidos por avisos de ataques aéreos, mas os jogos realizam-se e os jogadores seguem com a sua atividade. Isso é importante, estamos a conseguir jogar em clima de guerra. A Rússia não nos conseguirá quebrar, não será capaz de enterrar o nosso futebol. Vamos sobreviver e tornar-nos mais fortes", explana, admitindo prejuízos irreparáveis.
"Claro que perdemos perspetivas de desenvolvimento, há danos por apurar já que um grande número de instalações desportivas foram arrasadas por hostilidades ou perdidas na ocupação. Dói-me ver estádios em que estive na inauguração, que agora já não existem. Muitos jovens ucranianos perderam o seu processo de desenvolvimento, muitos foram para o exército para defender o país. São heróis mas o nosso futebol saiu muito penalizado", confessa, analisando a complexa resposta ucraniana no quadro da UEFA.
"Vejo os desafios que as nossas equipas tiveram de enfrentar, é complicado ser competitivo quando a terra natal está sob fogo e com tanto sangue derramado. Os jogadores têm estado motivadíssimos, sentem-se forçados a ir até aos limites das suas capacidades."
16135028