Há um ano, equipa do Tondela ajudou a salvar cidade cercada pelo fogo
As memórias de uma noite a lutar com o fogo. Equipa técnica e jogadores cruzaram-se com os grandes incêndios de 15 de outubro de 2017 na A25 e passaram a madrugada a ajudar uma cidade encurralada. "'Tudo é impossível até acontecer" é um ditado que se diz muito aqui em Tondela. É a frase que levamos para a vida", garantem os homens do futebol que saíram para a rua na hora da aflição.
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Sentados no banco de suplentes do Estádio João Cardoso, Pedro Oliveira e Rui Xavier, adjuntos de Pepa, viajam ao dia em que o impossível os apanhou num turbilhão de chamas e aflições que virou do avesso a cidade do distrito de Viseu - o treinador talvez concordasse com eles, se, por estes dias, não estivesse retirado em Quiaios, no curso de UEFA PRO.
Tondela é um ponto mais no mapa dos "fogos de outubro". Depois de mais de 60 mortos em Pedrógão Grande, meses antes, ninguém acreditaria que Portugal pudesse voltar ao luto por causa de incêndios descontrolados. No entanto, a equipa cruzou-se com esse fenómeno devastador na A25, e mais tarde os técnicos assistiram, incrédulos, ao impensável avançar do incêndio sobre a cidade, quando tentavam digerir a derrota na Taça de Portugal, no Mar, com o Leixões.
"Estávamos a jantar, e depois aquilo foi tudo muito rápido. Estávamos a ver o fogo a uma distância muito grande e, num curto espaço de tempo, já estava à nossa beira. Lembro-me de ver muitos carros a passar. O tráfego aumentou, consideravelmente, e a partir daí o pânico começou", recorda Pedro Oliveira.
Até a equipa técnica se perdeu. "Íamos para Viseu, mas demos com um caos tremendo e desistimos da ideia. Estávamos os três, eu, o Pedro [Oliveira] e o míster. Os restantes elementos tinham ido para o carro e perdeu-se a comunicação", conta Rui Xavier, o único cujo telemóvel funcionava, mas de nada serviu.
Ficaram todos em casa do chefe de equipa, junto aos bombeiros, mas não por muito tempo: "A determinada altura, o Pepa diz: nós somos novos; o que é que estamos aqui a fazer? Temos saúde, estamos bem, vamos mas é ajudar." Mergulharam assim numa jornada que ainda os arrepia.
"Quando chegou o fogo junto ao hotel, havia pessoas a tentar salvar as casas com mangueiras, a molhar a rua; havia um vento, um barulho tremendo do fogo muito próximo. Nessa altura, pensei mesmo: com tanto fumo, ainda fico aqui", admite Xavier. "Lembro-me de ver paus grandes, em chamas, a cair do céu, tal era a força do vento. Era uma força assustadora", diz Pedro Oliveira. Ainda hoje guardam a sensação de que só quem lá esteve tem noção do que ali se viveu.
No plantel do Tondela, o mais afetado pelo fogo foi Miguel Baptista, cuja família perdeu carros e viu mais património danificado. O então terceiro guarda-redes deixou o futebol, no final da época. É agora militar da GNR.
Hélder Tavares, lisboeta que há quatro épocas se mudou para o meio-campo do Tondela, "já estava em casa, deitado". Atravessar a A25 em chamas fora emoção suficiente, mas a agitação em redor arrancou-o à cama: "Levantei-me, abri os estores e era só fumo, não conseguia ver nada, na parte de trás de casa. Na frente, vi os meus vizinhos a tirar a boca de incêndio. Moro diante de uma fábrica e os vizinhos tinham medo que explodisse. Fiquei ali a ajudar no que pude. Até às quatro e tal, cinco da manhã. Ainda fui ter com o meu colega Cláudio Ramos, que também já morava na cidade, na altura, mas não podíamos sair de Tondela. À volta, estava tudo incendiado."
O dia seguinte fez luz sobre o que se passara: o Tondela esteve vários dias a treinar nos corredores do estádio, porque a qualidade do ar não permitia atividades ao ar livre. Mesmo assim, apesar das marcas do fogo no campo de treinos, das empresas destruídas na vizinhança, do cenário negro no IP3 e na A25, o campeonato não parou para o clube se recompor.
O Belenenses recusou adiar a jornada. Foi a Tondela e perdeu. "Pelo menos, conseguimos dar essa alegria às pessoas", recordam os homens de Pepa. Um ano depois, as marcas do fogo são de todo o tipo. Hélder não esquece "uma senhora a chorar, a dizer que perdera a casa, que perdera tudo"; os adjuntos lembram a "gratidão" dos que puderam ajudar, na madrugada em que se descobriram parte de uma comunidade "extraordinariamente resiliente", até diante do impossível.
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Despertar: "Nos primeiros minutos estava em pânico"
"Medo? Quem não tem? Todos nós temos", diz Hélder Tavares, quando se lhe pede que recue à viagem na A25, quando o autocarro do Tondela primeiro deu de caras com um incêndio de grandes proporções.
A travessia arriscada da via que, pouco depois, viria a ser interrompida, deixou na memória do médio uma marca de "calor". No entanto, nem todos os companheiros se aperceberam do insólito do trajeto: "O autocarro tem uma cama e o Claude vinha sempre lá deitado. Nem se apercebeu de nada. Só do calor. Quando chegámos aqui a Tondela é que lhe dissemos."
Natural de Lisboa, nunca se imaginou no meio de fogos florestais: "Nos primeiros minutos, estava em pânico. Depois é que parei, pensei um pouco, vi os meus vizinhos e fui ajudar."
A A25 em chamas foi apenas o começo
Luís Chaves conduz o autocarro do Tondela. Fintou o fogo na estrada e foi trabalhar para uma fábrica que ardeu. Acabou a ajudar a família.
Fazer inversão de marcha e ceder prioridade às chamas que se preparavam para atravessar a autoestrada parecia o mais sensato, mas, com uma viatura de 12 metros, foi preciso "arriscar" e ir em frente.
Este autocarro onde nos sentamos para conversar com Luís Chaves é o Scania. Não teve direito a batismo, como "a Vaidosa", que o precedeu. Tem 18 anos, a viatura oficial do Tondela, verde e amarela por fora, no porta-chaves pendurado na ignição e até no terço pendurado no para-brisas que, vai para um ano, enfrentou a A25 em chamas.
"Foi arriscado, porque isto não é uma carrada de batatas nem de cebolas, não é? São vidas humanas. Tive de arriscar. Por acaso, correu bem." Não foi o sentido aventureiro que o fez mergulhar no calor doentio. "Isto não é um carro ligeiro, tem 12 metros e andar ali a fazer manobras perigosas é complicado", defende o motorista: "Logo a seguir, uma senhora grávida, em contramão, faleceu."
De resto, "poucos passaram, depois" da viatura que levou a equipa do Mar até ao João Cardoso, mas não ao sossego de um fim de jornada. "Ainda vim apanhar coisas piores", conta este natural de Tondela, antigo fuzileiro naval, 56 anos. "Eu ainda vinha trabalhar. Quando chegasse, pousava o autocarro e ia trabalhar para a empresa."
Há três anos que conduz a equipa, mas também é segurança e operador numa fábrica de produtos, e comercializa frutos secos e outros produtos da terra. No turno que se seguiu ao futebol, viu o posto de trabalho arder: "A zona industrial foi das áreas onde o fogo atacou mais. Na empresa, já não houve hipótese de salvar nada. Ardeu tudo, só escapou uma parte dos escritórios. Ainda fui para lá com um extintor, mas não consegui salvar nada."
"Isto não é uma carrada de batatas nem de cebolas, não é? São vidas humanas. Tive de arriscar"
Lá perto, havia um veículo dos bombeiros, "mas era só para abastecer os carros pequenos", não pôde acudir. Luís Chaves ainda tinha uma longa jornada pela frente. Pelas três e meia da manhã, conta, foi "a casa de uma prima tirar umas botijas de gás, para não rebentarem", e procurar ajuda dos bombeiros para salvar a residência. "Ainda lhe ardeu uma parte da casa". Não acabou aí: "Fui para um poço de quatro ou cinco metros para ver se acudia a uma capoeira da minha mãe", recorda:
"Não havia luz, usei um motor a gasolina, mas estava desferrado e fui lá para dentro ferrá-lo." De manhã, "os olhos não aguentavam", cansados do fumo e daquelas horas "complicadas", insólitas, que deixaram um receio novo na terra: "As temperaturas estão muito altas, sei lá... Está tudo muito seco, a água cada vez é menos e isto tudo arde."
Uma empresa renascida
Um ano depois dos fogos de outubro, Luís Chaves voltou à rotina dos turnos como segurança e operador na Pinto Valouro, a empresa do ramo da avicultura e produção de carne de aves de que fala com orgulho. Depois de quase tudo ter ardido, nas instalações que o grupo na zona industrial de Tondela, "os patrões foram umas pessoas de respeito, aguentaram os postos de trabalho todos", conta.
A empresa reergueu-se ainda "maior". "Ampliaram-na", conta: "O material aplicado lá era para abrir um centro de incubação em Espanha e os patrões fizeram-no aqui em Tondela, para as pessoas não estarem muito tempo paradas." Houve trabalhadores que "estiveram deslocados vários meses, em Tomar", mas "só trabalhavam dois dias":
"Era alternado, para dar trabalho a todas as pessoas". Ele e "mais um colega" iam para a Mealhada. Os dias passaram a ter mais quilómetros na paisagem que continua a mostrar os sinais do fogo que ali passou. Nem todas as empresas conseguiram recompor-se, como nem todas as famílias recuperaram o património destruído. Luís Chaves é dos que recuperaram a normalidade laboral: "Arrancaram com a empresa em pleno há uns quatro meses."
