Eric Heiden ganhou mais medalhas de ouro nos JO de Inverno de 1980 do que as selecções de Finlândia, Noruega, Holanda, Suíça, Alemanha, Itália, Canadá, Hungria, Japão, Bulgária Checoslováquia e França - todas juntas.
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A 22 de Fevereiro de 1980, na recta final dos Jogos Olímpicos de Inverno de Lake Placid (Nova Iorque, EUA), o patinador Eric Heiden já tinha quatro medalhas de ouro penduradas no cacifo. Era, oficialmente, um dos melhores atletas da história da competição, já que ninguém, desde a criação das olimpíadas invernosas, 56 anos antes, alguma vez tinha conseguido ganhar cinco provas individuais numa só edição. Apesar disso, ou talvez exactamente por causa disso, Heiden decidiu ir ver o EUA-URSS em hóquei no gelo, em vez de ficar na camarata a descansar para a corrida que o podia fazer sentar-se à direita de Deus: os dez mil metros, marcados para o dia seguinte.
Foi uma noite gloriosa, que aliás se há-de contar aqui também. Depois de um trajecto feito à base de comovente tenacidade, a selecção americana de hóquei chegou à final antecipadamente vencida pela congénere soviética, campeã nas últimas quatro edições do torneio (e em cinco das últimas seis). Apesar disso, conteve os danos no primeiro período, equilibrou a contenda no segundo e acabou por vencer no terceiro. Nas bancadas, Eric delirou. A alegria com que celebrou o golo final de Mike Eruzione (o 4-3 para os Estados Unidos) só encontrou paralelo na ansiedade com que a equipa da casa suportou os derradeiros dez minutos de pressão do adversário.
Grande parte da Imprensa americana chamou-lhe "O Milagre no Gelo", tentando roubar para os EUA o epíteto com que a selecção canadiana de 1972, vencedora da Summit Series contra a mesma URSS (e cuja odisseia já se narrou aqui também), celebrou o seu triunfo. Ainda não há muitos anos a "Sports Illustrated" elegeu aquele jogo em Lake Placid como o momento mais icónico não apenas do desporto americano, mas do século XX. E ao regressar à camarata, naturalmente, Heiden teve dificuldades em adormecer. Teve dificuldades em adormecer e, de manhã, acabou por dormir de mais, acordando mesmo em cima da hora dos 10 000 metros.
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O que, mesmo assim, não o impediu de a vencer. De conquistar a impossível quinta medalha. E, inclusive, de bater o recorde do mundo por mais de seis segundos.
Dava um filme, a verdade é essa. E talvez ainda dê, se um dia o sound bite americano conseguir deixar por momentos de lado a obsessão da Guerra Fria (e a luta pela supremacia cultural) em favor de um heroísmo individual capaz de transcender até o choque das civilizações. Até lá, Heiden continuará à espera que se lhe faça justiça.
O que, por outro lado, também não quer dizer que a pretenda. Afinal, quantos dos pacientes de ortopedia que hoje visitam o Salt Lake Regional Medical Center, no Utah, sabem que aquele Dr. Eric Heiden, cirurgião especialista em doenças do joelho e do ombro, é o mesmo homem que há quase 40 anos reescreve a história da patinagem no gelo? E que mais tarde, aliás, ainda se destacaria no ciclismo, vencendo corridas, disputando o Tour e o Giro e, já agora, batendo o recorde de uma das subidas mais míticas da modalidade, a La Honda Road (Woodside, Califórnia)?
Mas é, realmente, o mesmo homem, e a sua história começou como tantas outras: brincando no pátio lá de casa. Filhos de médicos, Eric e a irmã, Beth, tinham espaço na pequena quinta de Shorewood Hills, onde cresceram, e em breve começaram a destacar-se, ela no ciclismo, na patinagem e no esqui alpino, ele no hóquei no gelo e no futebol. A certa altura, porém, as crescentes atenções à sua volta tiveram um efeito paradoxal no espírito do rapaz: a rejeição. Eric Heiden não queria ser famoso ou sequer admirado - e acabou por escolher, ele próprio, a patinagem, onde julgava poder passar despercebido.
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Foi difícil. Membro da equipa olímpica americana nos Jogos de 1976, na Áustria, ganhou a seguir três campeonatos do mundo consecutivos. Em 1980, nos seus segundos Jogos, ganhou primeiro os 500 metros, depois os 5000, a seguir os 1000 e, finalmente, os 1500. Finalmente? Não: faltavam os 10 000, e nesta corrida ainda bateu o recorde do mundo. Chamaram-lhe "O Rapaz de Ouro", "o primeiro homem a transformar gelo em ouro".
"Medalhas", desabafou aos microfones. "Nem sei o que dizer. Acho que preferia um fato de aquecimento confortável. Ao menos isso eu podia usar. As medalhas não servem para nada. Ficam só ali. Enfim, talvez as possa vender se um dia, quando for velho, ficar sem dinheiro..." Os cínicos elogiaram-lhe a personagem, os optimistas amaram-no ainda mais como o espírito-livre que, em todo o caso, sempre foi. O facto é que Eric, com apenas 21 anos ainda, se tornou um herói nacional. "Se quisesse ser famoso, tinha ficado no hóquei...", insistiu. Resultado: fugiu de imediato para o ciclismo.
Não foi uma carreira longa. Ainda nesse ano, tentou qualificar-se para os Jogos Olímpicos de Verão, mas não conseguiu. Insistiu. Fundou com Jim Ochowicz (seu treinador de patinagem e ex-ciclista) a equipa 7-Eleven Cycling Team e ganhou várias corridas. Em 1985, completou o Giro. Em 1986, teve um acidente feio numa descida e foi obrigado a desistir do Tour. Veio a abandonar as bicicletas com um título de campeão nacional americano (1985). Na década seguinte, seria comentador de patinagem na televisão. A partir daí, e finalmente, cirurgião a tempo inteiro.