Ortopedista Alcindo Silva melhorou técnica de cirurgia a lesões do ligamento cruzado anterior, mas desmistifica: recuperação deve durar entre seis meses e um ano e só 60% volta ao mais alto rendimento
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É nova, tem cunho português e permite operar crianças em idade de crescimento.
Qual é a diferença na sua abordagem à lesão?
Classicamente, há duas técnicas para tratar a lesão do ligamento cruzado anterior: a reconstrução com o tendão rotuliano [da parte da frente do joelho] e com os tendões dos isquiotibiais [dois tendões na parte posterior da coxa]. Porque a morbilidade associada ao local da colheita do enxerto do tendão rotuliano é acentuada, levou a que, nos últimos anos, a reconstrução do ligamento com enxerto de isquiotibiais aumentasse. No entanto, a colheita dos dois tendões isquiotibiais pode prejudicar a rotação da tíbia em relação ao fémur. O que a minha técnica tem de novo é que retira só um isquiotibial, mantendo o outro no lugar. O tendão isquiotibial é preparado com feixe quádruplo, isto é, dobrado em quatro para fortalecimento, e associa uma fixação com botões metálicos, aumentando a resistência e rigidez da fixação. Esta fixação é também diferente da clássica, habitualmente feita com parafuso. Além disso, o túnel feito na tíbia no final da cirurgia é preenchido com osso do próprio paciente, preservando a reserva de osso. Esta técnica tem ainda a grande vantagem de poder ser utilizada em crianças, sem risco de perturbação do crescimento ósseo.
A técnica foi desenvolvida por si?
Não posso dizer isso. Na verdade, usei os meus conhecimentos para modificar a técnica, tornando-a mais simples, mais eficaz, com menos morbilidade e com uma curva de aprendizagem mais curta.
Tem efeitos no tempo de recuperação, que era, no mínimo, de seis meses?
No pós-operatório imediato tem grandes vantagens. Dado que a fixação do enxerto é feito com botões, torna-se altamente rígida e resistente e não há limitações nem na mobilidade nem na carga do membro operado. Relativamente aos atletas de alta competição, apesar das mesmas vantagens no pós-operatório, o retorno à competição aos seis meses parece-me precoce para qualquer das técnicas utilizadas.
Porquê?
Quando fazemos uma reconstrução no cruzado anterior, o enxerto na articulação do joelho vai sofrer um processo biológico de necrose e revascularização, a chamada ligamentização. Associado a este processo biológico do enxerto, temos a recuperação muscular e propriocetiva de todo o membro. Aos seis meses, na maioria dos atletas, nem a parte biológica nem a parte física estão completamente recuperadas. Só entre os nove meses e um ano é que, na maioria dos atletas, o processo de maturação do enxerto está finalizado, como a recuperação muscular e propriocetiva do membro operado.
É só o tempo de paragem que preocupa?
Não. Apesar da taxa de sucesso da reconstrução do ligamento em geral ser superior a 90%, no atleta, mesmo com uma boa cirurgia e uma boa recuperação, só cerca de 60% é que vão manter o mesmo nível de atividade física. O nível de rendimento em 40% dos atletas vai diminuir.
O que é que faz a diferença entre estes dois grupos?
A explicação é multifatorial, sendo que há atletas que ficam receosos de nova lesão, outros em que a recuperação muscular e/ou propriocetiva não é completa e as lesões associadas podem comprometer a funcionalidade. Alguns dos atletas profissionais submetidos à reconstrução do ligamento acabam, ao fim de algum tempo, por desaparecer da competição.
"Amadores mais propícios"
Ortopedista no Hospital da Luz, trabalha com a AF Porto, por intermédio da sua ligação a uma companhia de seguros e alerta para os sintéticos.
Nos outros desportos é menos frequente?
Há outros desportos, como vólei, andebol e basquetebol em que a rotura de ligamento cruzado anterior é menos frequente. No futebol é muito frequente, sobretudo no desporto de competição amador. O aumento do número de campos com relvado sintético fez crescer de forma significativa as lesões do joelho nos atletas, nomeadamente do ligamento cruzado anterior. Está cientificamente provado que os sintéticos aumentam a probabilidade destas lesões. Ao nível da AF Porto, só no último ano operei mais de 300 atletas, sendo que muitos estavam ligados a competição de futebol amador.
Contrair lesões antes dos 20 anos aumenta a probabilidade de re-rotura. Mulheres são mais sujeitas
Há forma de prevenir as lesões?
Há protocolos de treinos específicos para os atletas. Além disso, parece-me importante ponderar se devem ser usados os relvados sintéticos, ou pelo menos, nesse tipo de piso, ter o cuidado de usar os pitões adequados na chuteira. Evitar competir com fadiga também é muito importante.
"Em atletas com menos de 20 anos a taxa de re-rotura pode chegar aos 20%"
A taxa de re-rotura não é desprezível. Se for em atletas com mais de 20 anos anda nos 7%. Em atletas com menos de 20 anos aumenta significativamente e pode chegar aos 20% nos homens e nas mulheres futebolistas pode ir até aos 30%, do mesmo joelho ou do lado oposto.
Rotura no ligamento do cruzado anterior é menos exigente que outras
Como avaliam se o atleta pode voltar ao trabalho?
Por volta dos três/quatro meses fazemos o teste isocinético, para avaliar como está a recuperar a parte muscular. Aos seis meses repetimos esse teste e 90% passam neste teste. No entanto, este teste só avalia a força muscular, e há outros parâmetros importantes. Hoje em dia temos um dispositivo - o Back in Action - com sete testes padronizados para atletas de alto rendimento que avalia, além da força muscular, equilíbrio, potência, coordenação, fadiga, entre outros parâmetros. Neste aparelho, a nossa experiência aos seis meses é que 90% reprovam nos testes. Ou seja, estão bem na parte muscular, da força, mas do ponto de vista propriocetivo não estão. Por isso, acho que seis meses é cedo para voltar a competir.
Dispositivo Back in Action veio demonstrar que aos seis meses os atletas não estão aptos a competir.
Porque se diz, comummente, que o atleta vai parar seis meses?
Poderá ser pela pressão, porque o atleta é importante para a equipa. Aos seis meses, na verdade, ele está apto a treinar, a integrar a equipa, mas não para competir. Pelo menos não ao mais alto nível. Isto vale para os profissionais e para os amadores.
Uma boa cirurgia e uma boa recuperação não invalidam, no entanto, que haja queixas a longo prazo. Piora se ao ligamento cruzado anterior se juntarem traumas no menisco e na cartilagem
Há sequelas a manifestar-se mais tarde?
Na altura do acidente, se tivermos uma lesão isolada do ligamento cruzado anterior, a taxa de sucesso é muito alta e normalmente não há problemas a curto prazo. Mas se existir, ao mesmo tempo, uma lesão do menisco ou da cartilagem, vai ter consequências. Muitos podem ter, mesmo bem operados, manifestações de dor, derrame articular e incapacidade funcional. Podem ter de parar a curto prazo.
Não havendo isso. Há problemas a longo prazo?
-Sim. O traumatismo da articulação do joelho, na altura da rotura do cruzado anterior, leva a alterações bioquímicas da homeostasia da articulação que pode desencadear mecanismos de degradação da articulação que culminam com fenómenos degenerativos a longo prazo. Alguns atletas chegam aos 50 anos com alterações degenerativas avançadas no joelho com necessidade de substituição protésica.
"Alguns atletas chegam aos 50 anos com alterações degenerativas avançadas"
O que mais lhe custa?
-Gosto muito de tratar atletas. São pessoas motivadas e querem ficar bem. O que mais me frustra não é o cruzado anterior, são as outras patologias associadas. Uma lesão no menisco externo, em que não é possível suturar e tenho de retirar o menisco, sei que a recuperação a seguir vai ser boa, mas em dois ou três anos vai ter alterações precoces e degenerativas do joelho e, em profissionais, a carreira é posta em causa. Ao fim de quatro ou cinco semanas, o atleta está a competir. No entanto, as consequências a curto e médio prazo são bem mais problemáticas.