A Micronésia perdeu com Vanuatu por 46-0 - era questão de levar a bola ao centro e voltar a ir buscá-la dentro da baliza
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O mais curioso, para Stan Foster, foi que os rapazes começaram a pedir-lhe para os deixar ir à baliza. Assim mesmo: levantavam-se do seu lugar, caminhavam até à fila onde se sentavam os oficiais da Federação, sentavam-se ao lado dele e pediam: "Mr. Foster, deixa-me começar a treinar como guarda-redes?" O treinador estava estupefacto. Ali seguia, a caminho de casa, a pior equipa que alguma vez tinha visto. Em três jogos, tinha sofrido 114 golos, não marcando um só. Apesar de tudo, ao subir para o avião, todos os jogadores pareciam trazer o mesmo objectivo: ir para a baliza.
Até que, vencido pelo mistério, o australiano decidiu perguntar: "Mas porque é que todos querem ser guarda-redes, agora?" Estava cansado. Há anos que vinha lutando pela ideia de desenvolver uma selecção de futebol nas ilhas da Micronésia, mas um arranque assim nem os seus piores pesadelos haviam previsto. Suspirou: "Haverá pior posição, nesta equipa, do que guarda-redes?" Até que um dos rapazes balbuciou: "Mas, Mr. Foster, viu mais algum jogador ser aplaudido, além do guarda-redes?!"
Selecção de sub-23 da Micronésia | Cinco dias, três jogos, três derrotas, 0-114 golos
Estávamos em 2015, e a selecção de futebol de sub-23 da Micronésia regressava a casa depois da estreia nos Jogos do Pacífico. Por todo o mundo, milhões de adeptos de futebol, humoristas de ocasião e utilizadores do Facebook estavam há dias a rir com os vídeos das cabazadas. Chamavam-lhe "a pior equipa do mundo". Vista a curiosidade de ela ter assumido como alcunha a expressão Four Stars, ou Quatro Estrelas, alguns jornais tinham-na mesmo passado a chamar Bola Preta, numa ironia espirituosa que alguns leitores nem compreenderam.
Dava um filme, pois claro. Resta saber se aquela viagem de avião seria o epílogo ou o prólogo. Afinal, acabava ou começava ali, a odisseia daqueles rapazes? Era mais extraordinário o que lhes acontecera até àquele dia ou terá sido mais extraordinário ainda o que lhes aconteceu depois, incluindo a recepção calorosa dos compatriotas, as homenagens por terem conseguido levar tão longe o nome de um país de que metade do mundo nunca tinha ouvido falar ou mesmo a promessa da Confederação de Futebol da Oceania de investir nas ilhas?
Pois, para percebê-lo, talvez seja preciso começar por perceber que ilhas são essas. É a primeira dificuldade, porque são centenas, dispersas por quatro estados - Yap, Chuuk, Phnpei e Kosrae - e uma série de arquipélagos para que o nome Carolinas será apenas um guarda-chuva. É tão complexa a geografia do Estados Federados da Micronésia, e são tantas as línguas que ali se falam (o inglês, o espanhol, o chamorro, as línguas austronésias), e foram tantos os graus de soberania de que diferentes parcelas do território gozaram ao longo dos séculos, que se costuma dizer que nem os locais sabem de cor os contornos do seu país.
De qualquer maneira, são mais de 600 ilhas dispersas por uma mancha de mar maior do que a França, e a que os limites de Filipinas, Indonésia, Papua-Nova Guiné, Melanésia e Polinésia servem de circunscrição. E foi entre os pescadores e agricultores delas, muitos saídos da aldeia natal pela primeira vez, que as autoridades desportivas de Yap foram recrutar jogadores. A maior parte apenas praticava futebol de rua, mas a Federação sentiu que ainda havia tempo para trabalhar. Primeiro, juntou-os em pequenos grupos. Finalmente, reuniu-os a todos em Guam, país vizinho, para um estágio de quinze dias.
Quando chegou a altura dos Jogos do Pacífico, em Port Moresby (Papua-Nova Guiné), já a equipa tinha feito vários jogos, de 45 ou mesmo 90 minutos, contra clubes amadores de Guam. Chegara a ganhar um (e por 7-1), e desde o fim do estágio que todos os jogadores possuíam botas oferecidas pelo restaurante onde tinham comido naquelas duas semanas. Apesar disso, a estreia com o Tahiti (3 de Julho de 2015) começou logo mal. Maihi, avançado tahitiano, fez o 1-0 aos 2" e, quando o árbitro apitou para o final, o marcador apontava 30-0. Era terrível, um resultado a apenas um golo dos 31-0 por que a Samora Americana perdera com a Austrália em 2001, recorde do mundo. Pior: os homens do Tahiti tinham mesmo dançado uma haka especial, a gozar com o adversário.
Mas alguns jogadores da Micronésia, que momentos antes haviam pensado em desistir, mudaram de imediato de opinião. Furiosos, juraram vingar-se nas Ilhas Fiji, no jogo seguinte (5 de Julho de 2015). Perderam 38-0. Só Tuivuna, o ponta-de-lança fijiano, marcou dez vezes. O treinador das Fiji quase pediu desculpa, envergonhado. Mas, como entretanto as equipas começavam a precisar de ponderar também as diferenças de golos, de modo a poderem seguir para as fases a eliminar, o terceiro jogo (7 de Julho de 2015) foi pior ainda: 46-0 para o Vanuatu, de que um dos avançados (Kaltack) fez 16 golos.
No espaço de dois dias, o recorde do mundo tinha caído por duas vezes. Felizmente, a Micronésia não estava filiada na FIFA e as selecções eram de sub-23, pelo que os recordes não seriam homologados. E é aí que estamos agora. Desde então, a Micronésia não voltou a jogar. Entretanto, houve dinheiro do COI e da FIFA, e Stan Foster prometeu fazer melhor em 2019.