OS INFIÉIS DEFUNTOS (episódio 2) - Uns mais gigantes e outros mais modestos que mirraram, sobrevivem ou se extinguiram. Episódios do desporto com história e protagonistas
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Estes são histórias de clubes que nasceram, cresceram e faleceram, para ressurgirem do fundo da terra já neste jovem século e voltarem a ver a luz do dia tal e qual como a haviam deixado. Não são relatos de sociedades falidas, extinções, refundações ou derivados. Não são ressurgimentos administrativos com designações diferentes por ligeiras que sejam, no nome, nas cores e no símbolo. Nestas histórias não cabem a Fiorentina ou Salgueiros; o Estrela da Amadora ou o Glasgow Rangers; o Nápoles ou Leiria, o Beira-Mar ou o Racing Avellaneda. Aqui não moram metamorfoses - só segundas vidas de verdade.
O JOGO fala de quem andou pelo mundo dos mortos até ressuscitar. Felizmente, há clubes que, afinal, não passavam de infiéis defuntos.
O spot publicitário teve um sucesso estrondoso, entrou para o folclore da televisão argentina... e arrancou de vez o Piraña do caixão
Clube pobre de Buenos Aires, o Piraña era o parente ainda mais pobre do bairro de Parque Patrícios e zonas limítrofes, onde o Huracán é de todos o maior, a par do San Lorenzo, do bairro vizinho de Boedo. O Piraña era paupérrimo até na identidade própria. Até o que era seu, afinal era emprestado ou não devesse o próprio nome à alcunha de um goleador do Boca Juniors, Jaime "Piraña" Sarlanga.
Este avançado xeneize era amigo de Alcides Solé, presidente e fundador do Piraña e achou graça emprestar o apodo a um clube recém-nascido e de importância residual. Era uma coletividade de rua e pouco mais. O equipamento do Piraña era branco como o Huracán e com duas listas verticais azuis e vermelho-a-atirar-para-o-grená à moda do San Lorenzo, os tais grandes clubes da zona.
Fundado em 1942, o Piraña vivia da simpatia do "barrio", dos seus locais e só em 1962 se federou na AFA, a federação argentina, para competir a sério - o máximo que lograria seria um campeonato da Primera D (1978), à época o quarto escalão no país das pampas.
Curiosamente, a maior medalha que o Piraña ainda hoje traz ao peito quase fala português e tem a cara de Hector Yazalde. O mortífero avançado teve no Piraña o seu primeiro clube, em 1964, gerando depois uma tempestade de golos no Independiente e, ora pois, no Sporting, onde fez os ainda imbatíveis 46 golos num só campeonato, na circunstância o de 1973/74.
O anúncio usou nas filmagens verdadeiros ex-jogadores do Piraña campeões em 1978
Mas o Piraña padecia de todas as doenças de um clube "chico", pequenino demais para Buenos Aires, onde a profusão de clubes é tremenda. Desfiliou-se da AFA em 1980, teve uma existência competitiva pirata durante mais um par de anos e a morte era o destino inescapável. As instalações foram deixadas ao abandono e para trás não ficou nem um papel numa secretaria coberta pelo pó, pelo bolor e pela desolação. Durante 15 anos, o Piraña parecia falecido, mas era mais um fantasma.
De súbito, em 2017, quando um grupo de ex-jogadores e vizinhos do campito do Piraña moviam esforços para tentar reavivar o clube que administrativamente nunca fora dado como extinto, o milagre surgiu através da caixa colorida.
A Telecel Personal, operadora argentina, fez um anúncio televisivo cujo enredo envolvia um homem de meia idade que gostaria de voltar a ver jogar o Piraña, clube dos seus amores na infância. Fazendo disso segredo, a esposa distribui telemóveis pelos filhos a fim de contactarem o máximo de ex-jogadores e adeptos para organizarem um jogo do Piraña na "cancha" pelada que hoje leva o nome de Yazalde.
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O anúncio usou nas filmagens verdadeiros ex-jogadores do Piraña campeões em 1978 como Víctor Impagliazzo, Antonio Cano Toledo e Oscar Alberto Bianco. O spot publicitário teve um sucesso estrondoso, entrou para o folclore da televisão argentina... e arrancou de vez o Piraña do caixão, agora reforçado pela simpatia de todo um país cuja paixão pelo futebol é flamejante.
Populares, antigos dirigentes, antigos jogadores dedicaram-se a tratar de todas as formalidades para reativar o clube e arregaçaram as mangas para, eles próprios, reconstruírem a sede e os campos anexos, ou seja, todo o património existente. Hoje, o Piraña continua a ser pobre, mas mais importante que ser pobre é que continua. Tem gente e vida, numa existência amadora, mas sempre enamorada pela prática desportiva.
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Ali, na Rua Elía, número 678, em Parque Patrícios, Buenos Aires, pratica-se futebol masculino e feminino, boxe, bem como taekwondo.
Há ano e meio, o Piraña ganhou um afamado torneio anual de futebol juvenil - o seu maior título deste século. Combina com um clube que volta a ser menino.
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