É possível evitar outro caso como a cisão no Belenenses? Há mais seis emblemas na I Liga onde, em cada SAD, o clube tem menos poder do que os investidores. Para a Liga, a lei precisa de ajustes, e uma das mais cotadas especialistas na matéria defende toda uma nova legislação. E conheça todas as estruturas acionistas do campeonato.
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O "divórcio" litigioso no Belenenses entre a SAD (I Liga) e o clube (Distrital de Lisboa) revela uma fragilidade no Regime Jurídico das Sociedades Desportivas (SD), decretado em 2013, que não previne, nem evita, casos idênticos e pode amedrontar investidores, independentemente de terem ou não a maioria na gestão das SAD.
"O organismo poderia regular, desde logo, a possibilidade de participação em competições profissionais por parte de um clube que, depois de um desentendimento com a SAD que constituiu, pretenda fazê-lo com outra equipa."
Na I Liga versão 2019/20, há, além do Belenenses, mais seis equipas cujo clube fundador (por si só ou através de empresas por si participadas) não tem a maioria das ações da sua sociedade anónima desportiva (SAD): Braga, V. Guimarães (clube tem o direito de veto no protocolo), Santa Clara, Portimonense, Aves e Tondela [ver quadro]. Não seria relevante se comparássemos, por exemplo, com o facto de praticamente todos os emblemas da liga inglesa serem geridos por investidores externos aos clubes, com o sucesso que se tem visto.
Das 18 equipas de I Liga, três (Rio Ave, Gil Vicente e Paços de Ferreira) ainda são SDUQ, sociedades unipessoais (clubes são acionistas únicos), podendo os vilacondenses transformar-se em SAD ainda este ano.
Na maioria das SAD, os protocolos (não públicos) assinados entre os clubes e os investidores/acionistas previnem complicações futuras, soluções, prazos, indemnizações e outras prevenções ou cenários de contingência. Por seu lado, a legislação estabelece as regras de convívio entre os acionistas: clubes e o capital dos investidores. Mas, como se vê, a lei não estava imune a casos como a cisão de Belém e aos seus impactos nas competições.
A questão que se levanta tem que ver com uma hipotética multiplicação desse caso, que começou em 2012, quando o clube do Restelo, sem dinheiro para continuar a competir, vendeu 51 por cento da sua SAD à Codecity, por meio milhão de euros. Uma guerra jurídica, entretanto, retalhou o Belenenses em duas equipas de seniores, que disputam duas competições diferentes. E, entre promoções e despromoções, hipoteticamente os dois podem cruzar-se no mesmo escalão, mais época, menos época. Ainda hoje, ninguém arrisca uma resposta a essa eventualidade.
"Liga pode regular"
Mas, como prevenir ou evitar outros casos que dividam adeptos de um mesmo clube entre equipas que reclamam o mesmo emblema e historial (mesmo com os tribunais a dirimir o conflito)?
"A experiência dos últimos anos mostra-nos que a lei precisa de ajustes", disse a O JOGO fonte da Liga de Clubes, que acrescentou: "O organismo está totalmente disponível para ajudar a repensar a referida legislação".
"A experiência dos últimos anos mostra-nos que a lei precisa de ajustes"
Por sua vez, Maria de Fátima Ribeiro, professora de Direito na Universidade Católica e autora do livro Sociedades Desportivas, onde analisa o regime jurídico das mesmas, "a atual lei deve ser revogada e substituída por uma nova, pensada de raiz" [ver peça à parte].
Referindo-se à generalidade e não a qualquer caso em particular, entende: "Quanto ao caso do conflito entre um clube e uma SAD, penso que o organismo regulador das competições poderia regular, desde logo, a possibilidade de participação em competições profissionais por parte de um clube que, depois de um desentendimento com a SAD que constituiu, pretenda fazê-lo com outra equipa".
E justifica: "É possível chegar à solução correta através da aplicação das regras do direito desportivo, do direito societário e do direito comercial, mas uma intervenção da Liga e da Federação poderia trazer maior segurança jurídica a todos os atuais e futuros envolvidos neste tipo de questões." (Ler depoimento integral abaixo)
TRÊS PERGUNTAS
MARIA DE FÁTIMA RIBEIRO (Professora da Direito na Universidade Católica do Porto e autora do livro "Sociedades Desportivas")
1 - É possível, através do atual Regime Jurídico das Sociedades Desportivas, evitar ou prevenir casos como o "divórcio litigioso" em curso em Os Belenenses ou é necessário rever/alterar o Regime Jurídico?
- Não é possível, face ao atual regime jurídico das sociedades desportivas, evitar ou prevenir este tipo de conflitos entre o clube fundador e a SAD por ele constituída - mas é possível, face ao atual direito comercial e societário, resolver este tipo de conflitos, embora naturalmente sem que as soluções a que se chega satisfaçam inteiramente ambas as partes (o que sucede geralmente quando se tenta resolver qualquer conflito jurídico).
O regime jurídico das sociedades desportivas vigente é francamente deficiente, e só aparentemente tutela os interesses do clube fundador quando ele constitui uma SAD através da chamada personalização jurídica da equipa desportiva. É possível (e urgente) reformulá-lo; todavia, dificilmente se evitarão ou preterirão por completo conflitos entre uma entidade que careça de investimento externo avultado e o investidor, uma vez que não é fácil conseguir atrair esse investimento se se recusar ao seu autor qualquer tipo de controlo sobre a gestão da entidade que o vai receber: tudo dependerá sempre do poder negocial (o mesmo é dizer: da situação financeira) do clube nesse momento.
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2 - Atendendo à realidade do futebol profissional português, e seis anos depois do estabelecimento do Regime Jurídico, que alterações estruturais são mais prementes, na sua opinião?
- A meu ver, a lei das sociedades desportivas não deve ser alterada; deve ser revogada por uma nova lei, pensada de raiz. A realidade foi-se alterando substancialmente (pense-se, por exemplo, na insolvência de um cada vez maior número de clubes e sociedades desportivas) e a lei vigente apresentou sempre deficiências gravíssimas.
Em primeiro lugar, embora seja adequada a imposição legal de constituição de sociedade desportiva sempre que um determinado clube desportivo desenvolva atividades que tenham essencialmente fim lucrativo, devia ter-se especificado que aquelas atividades que não persigam esse fim (e até possam pô-lo em causa) deverão continuar a ser prosseguidas pelo clube fundador, enquanto associação. Neste ponto, cumpre realçar que, se um clube optar pela via da constituição da sociedade desportiva por transformação, esta possibilidade lhe estará vedada, por o clube "desaparecer" neste processo, enquanto entidade de caráter associativo. Talvez esta seja uma das razões que explicam a quase inexistente adesão a esta modalidade de constituição de sociedades desportivas.
Uma segunda crítica prende-se com a opção legislativa de permitir a constituição de sociedade anónima ou de sociedade unipessoal por quotas. Na verdade, a estrutura e regime da sociedade unipessoal por quotas revelam-se inadequadas às especificidades das sociedades desportivas. Saliento, neste domínio, as debilidades relativas ao governo da sociedade e à exposição do clube fundador (sócio único) ao risco. Teria sido preferível, em meu entender, permitir a constituição de sociedades anónimas unipessoais - o que, na prática, se verifica, uma vez que é possível identificar no panorama das SAD portuguesas casos de constituição de sociedades anónimas desportivas que têm, essencialmente, um sócio (ou seja, nas quais os outros quatro sócios têm uma participação social de percentagem ínfima).
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Depois, a lei vigente privilegia, aparentemente, a tutela conferida ao clube fundador quando a sociedade desportiva tenha sido constituída pela personalização jurídica de equipa desportiva, mas a verdade é que o faz de modo pouco hábil, ora não permitindo ao clube prescindir de determinados aspetos dessa tutela (quando isso possa ser essencial para a obtenção do necessário financiamento), ora pondo em causa a própria estabilidade financeira do clube pela sua aplicação (o que acontece se a SAD for extinta e existirem no seu património instalações desportivas que não sejam necessárias para satisfazer os seus credores: devem ser atribuídas ao clube desportivo fundador e permanecer afetas a fins análogos aos da sociedade extinta, levando a que o clube, sem poder sequer dispor da propriedade destes bens, tenha de compensar os restantes sócios da SAD extinta relativamente à percentagem do valor desses bens que lhes caberia).
Finalmente, determinados aspetos de regime revelam-se de parca adequação ou eficiência, quando tidos em conta os fins que se visam prosseguir. É, nomeadamente, o caso das regras que regulam a estrutura organizativa da sociedade desportiva (sobretudo no que respeita ao órgão de administração: por exemplo, a lei parece sugerir a existência de gestores "não executivos" das SDUQ, o que, na ausência de norma especial expressa, é vedado pelo direito societário geral), bem como daquelas que estabelecem limites à participação em sociedades desportivas concorrentes (existe uma limitação, mas não se consagram mecanismos de controlo, nem sanções para a violação da norma).
É certo que a realidade das sociedades desportivas reclama, em vários aspetos, um regime especial, na medida em que está frequentemente em causa a tutela de interesses específicos, distintos daqueles que norteiam o regime geral das sociedades comerciais - mas não parece que o legislador tenha conseguido identificar esses interesses e escolher os meios que permitam assegurar, de modo eficaz e coerente, a respetiva tutela.
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3 - A Liga, enquanto regulador do futebol profissional, ou a Federação, enquanto tutela de todo o futebol, têm algum espaço de atuação em casos como o referido?
- Sim, têm - algum. A Liga, de resto, já tem suprido algumas deficiências do regime legal vigente. Posso indicar um exemplo: hoje é possível constituir uma sociedade desportiva unipessoal por quotas e, nos termos da lei, este tipo de sociedade não precisa de ter nenhum órgão de fiscalização política (como o conselho fiscal) nem sequer eventualmente, dependendo da sua dimensão, um revisor oficial de contas. Isto constitui uma fragilidade que não pode admitir-se numa sociedade que exerce a sua atividade em áreas tão sensíveis como o futebol profissional, e a Liga Portugal passou a incluir no Regulamento das Competições uma norma que obriga qualquer SDUQ que participe em competições profissionais a ter um destes órgãos.
Quanto ao caso do conflito entre clube e SAD, penso que o organismo regulador das competições poderia regular, desde logo, a possibilidade de participação em competições profissionais por parte de um clube que, depois de um desentendimento com a SAD que constituiu, pretenda fazê-lo com outra equipa. É possível chegar à solução correta através da aplicação das regras do direito desportivo, do direito societário e do direito comercial, mas uma intervenção destes organismos poderia trazer maior segurança jurídica a todos os atuais e futuros envolvidos neste tipo de questões.