
Chico Nelo
Miguel Pereira
ENTREVISTA, PARTE II - De cortar a respiração, a ténue fronteira entre vida e morte. A morte do filho e os anos no submundo. Chico Nelo desfia as provações e os amparos que lhe fugiram, entre dramas infernais. Foi agarrado pelas drogas, pelo álcool, foi correio de prostitutas, e quase levado da terra. Levantou-se...
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O afundamento de Chico Nelo, a espiral da desgraça compreende-se. Como qualquer prédio sem alicerces, desabou! A perda da mãe tornou-o ainda mais permeável aos maus caminhos. E não há ninguém que possa ousar atirar pedras quando se perde um filho. Nesta conversa, aqui mais corrida, traça-se uma espécie de cronologia. Os acontecimentos foram impiedosos. O FC Porto ainda retardou o peso dos problemas. "Se o Costa Soares foi um pai, o Rodolfo foi o meu padrinho. Mas há o presidente Pinto da Costa, o padrinho de todos. Ele e o Reinaldo [Teles] sempre me acarinharam muito, sempre quiseram ficar comigo, por isso estive tantos anos emprestado. Eram sensíveis aos meus problemas e nunca me abandonaram", desabafa.
Pergunta-se pelos tormentos, absorvidos por vícios. "Beber nunca bebi enquanto jogava. Quem bebe álcool não pode dar jogador. O que consumia era haxixe, mas nunca passei pelas malhas do doping. Até recusei tomar algumas coisas. Só queria fumar os meus charrinhos e estava bem. E o meu charrinho passava por mais mãos", junta, com humor, tentando aliviar os sentimentos, esbarrando num dia obscuro e fatal. "O charrinho tinha aquela forma de me relaxar. Era quase uma massagem. Ficava na boa, acalmava o rebelde. O álcool, se escolhesse esse caminho, seria a minha perdição. A jogar à bola não toquei noutras drogas. A morte do meu filho, com apenas um ano, é que me fez cair na cocaína. Perdi vários anos, porque não tinha os pais como referências", admite Chico Nelo. Ainda descreve a fatalidade súbita e reflete. "Isso marcou-me a vida, felizmente as minhas filhas, muito pequenas, não se aperceberam do meu estado. Andava sempre fora de casa, tomava drogas e ainda era o correio das drogas para a prostituição. Entregava o produto às prostitutas, ou aos gays", conta, revivendo a desordem que lhe ameaçou a vida. "Tinha consciência, sabia que tinha de ficar em casa, mas aparecia o vício e todos os dias voltava ao mesmo, era sempre mais forte a necessidade. Até que comecei a ter problemas, muitos vómitos, sentia-me mal, com falta de ar. A médica avisou-me que se continuasse a beber ia descambar numa cirrose. Decidi que tinha de sair, caso contrário morria!", afirma, num shot de força de vontade. "Era o álcool que mais me estragava. Porque acordava e tinha logo de beber, favaios ou sangria ao litro", recua, viajando por demónios vencidos.
"Recuperei por minha conta, sem ajudas ou desintoxicações. Depois do aviso da médica, não pensei muito, percebi que se subisse um degrau abafava logo, se andasse mais de dez metros sentia-me mal. Havia um princípio de hepatite. Curei tudo a sangue frio", resume, despachado, livre do terror que permitiu que invadisse a sua vida. Um alívio, que dispara da alma, mas que não apaga o olhar meigo e triste de um eterno menino. "Hoje estou de boa saúde e mais bem resolvido. Faço as minhas corridas diariamente. Até posso dizer que pareço um jovem, com 57 anos. O período crítico foi mais dos 32 aos 42. Perdi muito músculo nos braços, quando jogava era mais gordinho. Mas estou bem."

Pedroto, Zé Beto e o génio de Frasco
Chico Nelo espia o passado, feito de estrelas em redor, da sua magnitude, de carne e osso, e génio num exercício de paixão e veneração. Contempla-se a infância difícil, a breve luz do estrelato num espaço de eleição. No FC Porto acumulou ensinamentos e prazeres, lições e momentos para o indomável esquerdino, admirado pelo talento por técnicos como Pedroto, Artur Jorge e Carlos Alberto Silva. "Ainda fiz jogos pelas reservas do FC Porto contra a equipa finalista da Taça das Taças. Era só craques. O Pedroto fazia-me treinar contra eles, depois também apanho o Morais. Não esqueço a frase do Pedroto: "Se tiveres cabeça vais dar jogador, tens jeito. Mas tens de trabalhar e andar bem." "Isso ficou-me", recorda, não esquecendo a notícia que tingiu de tristeza o universo azul e branco. "Pouco tempo depois ele adoece. Mas percebi que gostava mesmo de mim. Era um técnico atento a tudo, via os juniores com frequência", relata Chico Nelo, embalando nas memórias de balneário, sorrindo, tocado pela malandrice comum ao falar de outra figura que entrou na galeria da saudade muito cedo. "Eu parava muito com o Zé Beto, ele era um espetáculo! Era como eu, completamente livre. Por vezes parecia ser ele a mandar em tudo, parecia o treinador. Colocava os brasileiros em sentido, se os via a beber uma cervejinha dava uns murros nas portas e agitava todo o mundo. Mas ele era assim, porque amava o FC Porto, aquilo vinha da alma", conta, curvando-se a Frasco, o homem que definia a arte do jogo.
"Treinei, praticamente, com todos os que foram campeões europeus, apanhei a geração de Basileia e de Viena. Tive um ano em que joguei muitas vezes com eles, mas vou para Famalicão no ano de Viena. Admirava-os a todos, mas era fã incondicional do Frasco! O prazer máximo que me conduzia a cada treino era ver como ele jogava", confessa, metendo outro nome ao barulho, que antecedeu João Pinto no lado direito da defesa. "Também adorava o Gabriel, que era incrível a fazer carrinhos."

André em sangue e sem perdão
O médio também passa pela Madeira, após dois capítulos no Minho, entre Famalicão e Gil Vicente. Chega ao União da Madeira, tornando-se peça basilar numa equipa que foi orientada por Rui Mâncio e Ernesto Paulo. Recorda a passagem sem grande alarido, apesar da conversa descomplexada. "Na Madeira só tive problemas para me adaptar ao clima, demorei uns meses. Corria um pouco e arfava, porque era imenso calor. Não sabia o que se passava. Com o tempo soltei-me. Mas nunca me perdi muito ali, não gostava das discotecas nem da poncha. Era mais umas cervejinhas e umas ganzas", graceja Chico Nelo, que também protagoniza um jogo quente nas Antas, agredindo André com violência. O médio portista acaba pontapeado na testa, agarra-se durante segundos à cabeça, visivelmente ensanguentado, mas prossegue em campo de cabeça ligada. O médio do União escapa ao vermelho.
"O André traçou-me as pernas e ao levantar-me prendi-lhe a perna e passei-lhe os pitons na testa. Sabia que não estava no raio de visão do auxiliar. Ficou logo a sangrar. Avisei-o que não voltasse a insultar a minha falecida mãe. Não o perdoei e nunca mais lhe falei. Ele sabia o que tinha acontecido, aquilo não se faz. Ele foi mau, até porque nos conhecíamos do FC Porto. Mas com a marca que ficou, se me pudesse enforcar, enforcava-me", relembra o médio, que recebeu uma mensagem de bom Natal no balneário do União nas Antas. "Foi um gesto curioso, não sei de quem, mas sabiam o que eu estava a passar", acrescenta, a propósito de um duelo que aconteceu no final de novembro de 1991.
"Nesse FC Porto jogavam Semedo, Magalhães, João Pinto, jogadores com quem havia privado, já para não falar do meu querido Rui Filipe, que ainda foi meu colega no Gil Vicente. Ainda treinei no FC Porto do Artur Jorge, mas preferi regressar a Barcelos para jogar."
