A era do futebol "high-tech": "Tudo o que beneficia o treino deve ser utilizado"
Ao mesmo tempo que as novas ferramentas dos treinos pretendem aprimorar o atleta e evitar o imprevisto, a FIFA estuda hipótese de alterações às regras para dar mais ritmo ao jogo e estimular a emoção
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Imaginem um treino de uma qualquer equipa de futebol. Qual a imagem que vos surge? Atletas a correr de um lado para o outro, com uma bola, seguindo as instruções de um treinador, cuja voz pode surgir mais estridente em caso de má execução do exercício? O treinador no meio de um círculo a desenhar num quadro as dinâmicas que pretende ver na equipa? Esqueçam essa imagem!
Os treinos das equipas de futebol têm evoluído ao ritmo da tecnologia. José Mourinho chegou a Roma e deu nas vistas - nada a que não esteja habituado - pela forte vertente tecnológica do seu treino. O treinador português filma os treinos com recurso a drones que disponibilizam de imediato as imagens numa tela gigante para que todos vejam o que deve ser corrigido, ou não.
Se Lopetegui foi revolucionário ao pedir para instalar uma torre de filmagem de sete metros no Olival, em 2014, para apreciação posterior das sessões de treino, Mourinho elevou a fasquia.
A verdade é que os treinos estão a mudar e são cada vez mais "high-tech". Desde logo pelos "tops" que os atletas usam, com transmissão dos dados por wireless. Com GPS incorporado, de extrema sensibilidade aos impactos, rastreia a velocidade do atleta, a distância percorrida e o posicionamento em campo. Por norma têm também um biomódulo capaz de medir a frequência cardíaca e respiratória e a variabilidade desta, postura e impacto. São uma ferramenta útil na prevenção de lesões, dão a noção de intensidade fisiológica, tempo de recuperação cardíaca, tempo de reação.
A seleção brasileira, por exemplo, no Mundial da Rússia, em 2018, fez parceria com a empresa tecnológica - a Apex - para controlar os dados dos jogadores, tanto nos treinos como nos jogos. Com os dados referentes à velocidade, aceleração, distâncias, cansaço ou risco de lesão, monitorizaram a utilização dos jogadores em prova, como nunca tinham feito até então.
Nesta transformação do dia-a-dia dos atletas em números, há ainda que ter em conta uma tecnologia usada pelo Benfica em 2016, o "relógio do sono". O descanso dos jogadores era monitorizado, desde as horas de sono, vigília, horários praticados ou a exposição à luz, tudo era analisados para estabelecer um padrão de reação.
O que também já está generalizado nos atletas - João Félix é, aliás, rosto de uma campanha publicitária a um produto destes - é a sapatilha com palmilha inteligente, que mede distância de corrida, drible, passes e remates. A seleção da Alemanha usa uma palmilha destas, da Adidas.
Se estas tecnologias lhe parecem mais "normais" (onde se podem incluir as tecnologias de apoio à arbitragem), o que dizer da monitorização de guarda-redes em treino, através de um cinto torácico que envia informação sobre o tempo de reação, queda, disposição corporal para um monitor que representa os movimentos?
Mais revolucionário ainda é o uso de realidade virtual, em capacete ou óculos. São usados para testar e estimular os reflexos dos atletas, desenvolvendo a parte mental sem o desgaste físico da sessão de treino normal. Este género de indústria - de acordo com o relatório 2020 XR Industry Insight - aumentou o desenvolvimento de software e aplicações, sendo 65% deste trabalho feito a pensar em vendas para clientes empresariais, em detrimento da venda ao consumidor individual.
No basebol já não é novidade e no futebol pode deixar de ser em breve. A "Mi Hiepa", por exemplo, desenvolve aplicações de realidade virtual para o futebol e tem como clientes o Liverpool. A tecnologia aplicada ao treino está, portanto, a aprimorar as capacidades dos jogadores e a diminuir-lhes a margem de erro, algo que pode retirar emoção ao jogo, na mesma proporção em que lhe retira a imprevisibilidade que apaixona dos adeptos. E emoção e ritmo parece ser o mote da FIFA, nas sugestões de alterações às regras de futebol.
Na taça do futuro do futebol, a FIFA testou a implantação de duas partes de 30 minutos (úteis), com o cronómetro a parar quando a bola sair do campo ou houver faltas. Pretende também permitir substituições ilimitadas, lançamentos laterais com os pés e associar a suspensão temporária do jogador por cinco minutos ao cartão amarelo. A FIFA considera que estas mudanças fomentam situações de muito mais perigo, dão maior ritmo aos jogos e pondera apresentá-las ao International Board, organismo que fixa as regras do futebol.
De qualquer forma, se a eventual mudança de regras não aumentar a adrenalina dos adeptos, podem sempre aguardar pela chegada ao mercado da tecnologia que permite experienciar o que o nosso jogador preferido está a ver, a ouvir ou a velocidade a que chuta a bola. Ou então, esperar que as operadoras se decidam por transmitir os jogos em realidade virtual. Não falta nada para isto, afinal, a NBA já o experimentou.
Qualidade deve prevalecer
Tiago Moutinho, ex-adjunto de Sá Pinto, vê vantagens no uso da tecnologia que o mercado disponibiliza, mas aponta margem de erro na quantificação de alguns movimentos
No trabalho diário, a tecnologia está incorporada e é encarada como um aliado. "É fundamental, no início do treino, ter um ecrã com a imagem para analisar e demonstrar o que se pretende", afirma Tiago Moutinho, treinador. E se, hoje em dia, "toda a gente filma treinos", a análise das imagens durante a sessão convém que não ocupe muito tempo do treino.
A par disto, o ex-adjunto de Sá Pinto deixa uma advertência: "Deve prevalecer a análise e a avaliação qualitativa do treino e deve ser complementada com a avaliação quantitativa que nos é dada pelas tecnologias". Ou seja, nem sempre os números representam bom desempenho. Por exemplo, os dados de GPS assinalam o sprint dos atletas, não distinguindo se ele é feito para aproveitar uma situação de jogo ou para ir buscar água.
Tiago Moutinho reconhece que todos os dados são importantes, salienta apenas o cuidado na sua análise, não se devendo ficar apenas pelos números. Aliás, os treinadores portugueses valorizam, precisamente, "a tática e a estratégia, não querem que corra muito, mas que corra bem e se posicione".
Entre a tecnologia de maior valia está o GPS, até porque "alguns conseguem identificar a temperatura muscular, um dado importante para o fisiologista ou preparador físico na prevenção e tratamento de lesões". Outra é o relógio do sono. Através dele é possível conhecer o descanso do jogador, mesmo quando ele não se apercebeu de nada de anormal na sua noite.
"Conseguimos saber se houve uma alteração ou não. Pode ter havido, por ter sonhado e não ter acordado", exemplifica. Não foi o que aconteceu a Izmailov, quando jogou no Sporting (entre 2007 e 2013). "Comprou o andar em frente para ir dormir, porque tinha dois filhos e acordava de noite com eles", lembrou.
"Não basta ter tecnologia"
Inovação de Mourinho nos treinos? "Já tive isso na China", atira Manuel Cajuda, referindo-se à temporada de 2017, no Sichuan Annapurna. Aos 70 anos, o treinador português garante que "só se fosse muito retrógrado é que não aproveitava as inovações tecnológicas, tudo o que beneficia o futebol deve ser utilizado. Não muda o futebol, ajuda a que o treino seja mais rentável, e se o treino for melhor, seguramente o jogo ficará melhor. Mas não basta ter tecnologia", alerta.
O técnico lembra que se deve ter em conta que o homem é sempre mais inteligente do que a máquina e é importante dar atenção a outras vertentes do jogo, como o lado psicológico e emocional dos atletas.
Assim, a tecnologia deve ser usada com moderação, tal como uma bebida alcoólica. "Se pensarmos que futebol é tecnologia ficamos bêbedos! Temos de a utilizar com o único sentido de aperfeiçoar as nossas [dos treinadores] metodologias ao longo do ano."
O GPS nos jogadores, agora democratizado em todas as equipas profissionais (e não só), já era usado por Cajuda em 2003/04, na Madeira, quando treinou o Marítimo. "A medição da frequência cardíaca entrava diretamente no computador e tínhamos noção de estar, algumas vezes, a passar os limites dos jogadores", confessa.
Direto, num estilo que lhe é característico, revelou mesmo que houve um momento em que estas ferramentas o ajudaram "a descodificar muito o falso cansaço que alguns jogadores dizem sentir".