ZOOM - E se, como na Holanda, os grandes partilhassem 10 por cento das receitas da UEFA?
Os três grandes da Holanda querem doar 10 por cento das suas receitas nas provas da UEFA aos clubes concorrentes na Eredivise. Dois cronistas de O Jogo consideram utópica tal intenção em Portugal. Entretanto, a nossa Seleção ganha fôlego com três dezenas de jogadores emigrados. Os nossos campeonatos geram talento, mas os impostos não ajudam a cativar os melhores. Sem equilíbrio económico e competitivo, as ligas nacionais definham, avisa atempadamente a European Leagues.
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É opinião praticamente unânime a de que o selecionador nacional tem, neste momento, uma trintena de selecionáveis bem capazes e competentes para garantir resultados consistentes e discutir títulos nas competições em que Portugal se vai apresentar nos próximos anos.As mais recentes vitórias sobre a Polónia (Liga das Nações) e Escócia (preparação) revelaram um conjunto de mão-de-obra alternativo mais do que interessante e com outras valências ao nível da técnica individual, músculo coletivo, ousadia e arrojo de quem tenta o seu lugar ao sol.
Mas façamos uma leitura mais analítica, com o foco na relação entre a Seleção e o futebol caseiro, especialmente os campeonatos profissionais e semiprofissionais, neste caso, os Sub-23, onde o epíteto "formação" se confunde com os primeiros patamares contratuais.
Dos 26 jogadores eleitos por Fernando Santos para estes dois últimos jogos (e o anterior, com a Itália), apenas oito jogam na I Liga. Ou seja, menos de um terço. E se enquadrarmos os 11 habituais selecionados, com Ronaldo à cabeça, que ficaram de fora, por comparação com o último Mundial, podemos dizer que dos 37 são os mesmos oito que jogam no cantinho lusitano. Menos de um quarto dos selecionáveis.
Outros factos: Portugal é um país "exportador" de futebolistas, os campeonatos são montras de talentos, mas a receita começa a esgotar-se quanto ao valor e ao impacto das equipas nacionais numa cada vez mais feroz UEFA no que diz respeito aos seus melhores produtos nesse capítulo, Liga dos Campeões e Liga Europa.
Estas duas competições são rentáveis produtos que a tutela uefeira está a gerir como se fosse a voraz administração de uma empresa com um único desígnio: a intensa e massiva valorização das mesmas, atribuindo-lhes critérios de acesso cada vez mais fechados. Que é como quem diz, muito mais abertos às ligas onde o valor de marca das equipas é superior: Inglaterra, França, Alemanha, Espanha e Itália. O critério histórico, implementado no ciclo 2018-21 da UEFA a isso ajuda.
A pairar no debate sobre o futuro do futebol flutua espetro de uma superliga europeia, competição fechada e apenas com os emblemas mais fortes, que só ainda não está mais estruturada para arrancar graças à oposição de alguns nomes importantes da indústria, como o de Javier Tebas, presidente de LaLiga espanhola, que a considera "preocupante e prejudicial ao futebol europeu", pois boicotará o equilíbrio competitivo, que começa nas ligas caseiras.
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Sem equilíbrio competitivo e económico, o "Competitive Balance" como o entende a associação das ligas profissionais, European Leagues, nenhuma competição é estruturalmente forte. Claro que a palavra equilíbrio é conjunturalmente adversa aos interesses dos grandes emblemas dos campeonatos menos poderosos, onde a falta de mão-de-obra qualificada (os melhores jogadores) esvazia o valor da competição. E em Portugal, ainda por cima, a distribuição de receitas televisivas é, no geral, muito baixa e com diferenças acentuadíssimas entre os grandes e os restantes.
Esse diagnóstico foi devidamente esclarecedor na Holanda e o futebol pretende reorganizar-se em função desse equilíbrio competitivo, com Ajax, Feyenoord e PSV Eindhoven a proporem à sua liga, enquanto organismo de tutela do futebol profissional, a redistribuição pelos seus concorrentes menos poderosos de 10 por cento das receitas que o trio garante na Liga dos Campeões.
A principal contrapartida proposta é a alteração dos relvados sintéticos para naturais. Ou seja, por cá, o mesmo poderia ter efeito no apoio às infraestruturas dos emblemas menos poderosos economicamente, promovendo a valorização do espetáculo, melhoria das condições para adeptos e transmissões de TV, etc...
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Não deixa de ser sintomático que os dois cronistas de O JOGO mais ligados a Braga (Miguel Pedro) e ao Vitória de Guimarães (José João Torrinha) se refiram, em sintonia, nas suas opiniões de domingo passado, à proposta feita na Eredivise.
O primeiro desabafa: "Em Portugal, nem em sonhos isso aconteceria". O segundo é perentório: Não seria possível só pelo facto de os nossos três grandes serem capazes de se entender no que quer que seja (...) e nunca lhes passaria pela cabeça tal coisa".
Basta ponderar em torno das estimativas da UEFA* para o triénio 2019-21 e das contas desta época, que já são passíveis de aritmética pura: FC Porto, Benfica, Sporting e Braga (pelo menos), a disputar as duas provas europeias, no global farão cerca de 90 a 100 milhões por época (um pouco menos ou um pouco mais, depende do quão longe chegarão). Sobretudo FC Porto e Benfica, que já garantiram o mínimo de 80 milhões esta época, só à custa do novo coeficiente histórico, implementado esta temporada. Os números são altíssimos e desnivelam ainda mais a competitividade em Portugal.
Como as contas na Holanda se fazem entre Ajax, Feyenoord e PSV Eindhoven, cujas receitas "uefeiras" estão estimadas para cerca de 70 milhões, as três equipas propõem doar cerca de sete milhões anuais aos restantes concorrentes internos. Imaginem, portanto, cerca de 10 milhões de euros distribuídos anualmente pelos restantes 14 emblemas portugueses da I Liga, mesmo que com critérios iguais ou distintos, por exemplo, pelo desempenho desportivo. Nem que não fosse, claro está, para fomentar um mecanismo de apoio às infraestruturas dos concorrentes.
Obviamente, nada disto se pode fazer por decreto de uma espécie de taxa Robin dos Bosques. Nem Liga nem Federação podem obrigar os clubes a redistribuir parte das receitas a que, individualmente, têm direito. Mas, tal como os holandeses perceberam que a desvalorização do campeonato, no seu todo, pode ser prejudicial, a prazo, aos emblemas mais fortes, talvez esse seu exemplo se transforme em nota de ponderação aos emblemas de campeonatos congéneres, como o nosso.
Urgem, pois, medidas estruturais, mas não das que enchem títulos de jornais embora vazias de ações. Desde logo, é fundamental tornar o campeonato português atrativo para os melhores protagonistas. E para tal não basta que os três grandes se entendam. Ou seja, a outra solução para reter ou cativar para Portugal os melhores praticantes leva a negociações do futebol com o Estado, com o Governo, nomeadamente ao nível da fiscalidade.
Conforme se viu aquando do recente noticiário sobre o mexicano Herrera, mais de metade dos seis milhões na mesa de negociações entre o empresário do jogador e o FC Porto tinham por fim os cofres do Fisco. Como referiu domingo o diretor de O JOGO, das cinco grandes Ligas apenas a França tem um quadro fiscal mais oneroso para os clubes. Do outro lado do argumento, aparece a Turquia, de Quaresma, Pepe e Beto, que cobra metade...
É preciso segurar os melhores na I Liga? É preciso convencer os talentos estrangeiros a preferirem Portugal? Ou até mesmo os futebolistas credenciados que, em final de carreira, acrescentam valor às marcas? Sim, tudo isso é necessário. Mas o futebol não é um estado dentro do Estado. Há um deve e haver entre a administração central e a indústria do futebol que não se deve resumir a meia dúzia de convites para a festa.
*Fonte: UEFA Club Licensing Benchmarking Report FY 2016