Ana Gomes: "Quando se vê Vieira a tentar justificar os negócios com Ricardo Salgado..."
Ex-comissária europeia assinala a sujidade dos negócios no futebol e valoriza a ação de Rui Pinto para os pôr a público.
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Ana Gomes, candidata às últimas eleições à Presidência da República, teceu um duro ataque aos negócios no futebol, enquanto testemunhava no âmbito do processo de Rui Pinto, criador da plataforma Football Leaks.
"Como membro do Parlamento Europeu entre 2004 e 2019 tive de me interessar quanto à iniquidade fiscal que caía sobre os cidadãos. O Football Leaks aparece no contexto dos Panama Papers. Interessou-me sempre a vertente do branqueamento de capitais no financiamento do terrorismo. Eram várias máfias. As TPO [Third Part Ownership] envolviam tráfico de menores de África para a Europa. Há uma indústria mafiosa e de várias máfias para explorar os buracos na fiscalidade. A compra de clubes de futebol russos chineses, cazaques alia-se ao sistema de apostas e ao e-gaming, este uma lata de vermes que ainda nem se abriu", afirma em sessão de julgamento do Football Leaks, precisando quanto à realidade portuguesa: "O Football Leaks vem a público aquando da investigação do Panama Papers. É óbvio que esses crimes estão no futebol e servem para roubar os cidadãos. O futebol tem implicações perversas para a administração de recursos do país.Quando se vê Luís Filipe Vieira, presidente do Benfica, numa comissão de inquérito na Assembleia da República, a tentar justificar os negócios com Ricardo Salgado, como barriga de aluguer [é interrompida pela juíza, que pediu para não se reportar a outros casos]... Há uma ligação e isso passa-se com o maior clube do país, mas também com os mais pequenos. Assim se explica que os clubes pequenos em Portugal sejam comprados por magnatas. São esquemas de lavagem de dinheiro."
Já no exterior da sala de audiências prosseguiu o raciocínio: "Vieira foi um barriga de aluguer, funcionou como testa de ferro de um banqueiro, que, estranhamente, não foi incomodado e continua a viajar com a riqueza que acumulou, isto enquanto há portugueses lesados pelo banco que ele chefiava. Ver uma pessoa que admite que não tinha dinheiro e que ganhava dinheiro com o banco que não era dele", afirma.
Depois, pormenorizou a relação com Rui Pinto. "Fui vê-lo quatro ou cinco vezes à prisão. Caí das nuvens quando soube que era um jovem português a fonte do Football Leaks. A partir do momento em que foi extraditado pensei vê-lo. É-lhe atribuído um prémio Whistleblower, que também teve outros jornalistas premiados, alguns deles até assassinados. Fiquei com a ideia de que era jovem, cândido e culto. Fui-lhe levando livros e encomendei-lhe livros difíceis de encontrar até. Pareceu-me que desenvolveu capacidades informáticas por ter perdido a mãe muito cedo", explica, considerando que o seu papel de denunciante se gerou depois de se aperceber dos crimes contidos no futebol.
"No início pareceu-me que a paixão pelo FC Porto terá gerado o seu interesse inicial nesta procura de informação, mas acredito que tenha percebido que era mais importante que o futebol. Ao encontrar a porcaria que encontrou, percebeu a importância política e pública, daí o Football Leaks. No início, achei-o bastante revoltado com a sua situação e muito relutante à cooperação. Incitei-o sempre a colaborar com a polícia. Era através da colaboração que podia alcançar o desejo de verdade e Justiça. Pareceu-me que estava disposto a sacrificar a sua vida pela Justiça. Tinha um grande ceticismo às autoridades, nomeadamente no caso da Doyen, que tal como eu, achava pouco recomendável. O objetivo número um dele era que se fizesse Justiça além do futebol. Sem a coragem destes senhores [whistleblowers] não saberíamos como os nossos governantes fariam certos negócios. Foi por isso que me associei ao Rui Pinto. É inegável o papel de denunciante de Rui Pinto, de acordo com a quarta e quinta diretiva contra o branqueamento de capitais. O Estado tem de proteger quem faculta dados contra a criminalidade organizada. Não me perguntaram se o acesso era indevido. Os meios nunca justificam o fim e não o justificam também para advogados ganharem dinheiro em esquemas de fuga fiscal e branqueamento dos dinheiros públicos", concluiu.