Chutos pela liberdade contra a ditadura de género: "Público não vibrava, só discutia o tipo de corpo"
Alfredina Silva, pioneira no futebol feminino em Portugal, disseca as conquistas que vieram com o 25 de Abril. Modalidade em crescimento fortíssimo, demorou imenso a emancipar-se e a dar visibilidade às protagonistas. Não bastasse o preconceito, ainda houve a suspensão da atividade da seleção, entre 1983 e 1993.
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Celebra-se a liberdade. Uma ode às escolhas, às vontades, ou inabaláveis convicções. O 25 de Abril fermentou a mente e desabrochou o cravo e o pensamento, pulverizando amarras, fez escorrer a paixão das alegrias constrangidas ou libertar os prazeres submergidos ou enjaulados. Sem medo das palavras e das opiniões. Dos desabafos públicos. Cinquenta anos já passaram sobre tantas e doces conquistas, que nos ajudaram a fazer olhar uns nos outros com o selo da igualdade, admirando as diferenças, mesmo com os ruídos abjetos dos saudosistas da censura e afrontas aqui e ali a conquistas da cidadania. A transmissão da liberdade escrita na revolução tornou a nossa vida airosa e destemida. Repleta de desejos, abrindo o espaço de realização pessoal.
Assim se confessam as mulheres portuguesas, ou meninas ainda, que só queriam traçar o seu rumo com uma bola de futebol, saltar da rua para um campo com a mesma aceitação dos homens. Importa aqui relembrar, vendo a força adquirida hoje pelo futebol feminino em Portugal, sumo espremido com três Europeus e um Mundial. E rejubilar com o facto de já termos craques celebradas pelo país sem mesquinhez ou desdém, livres de bocas feias. Porque são, realmente, distintas. E a emancipação da modalidade já se traduz em mais de 20 mil praticantes.
Entre um arranque de algo que não existia ou não podia existir, dos pequenos a grandes passos, das viagens vertiginosas à glória, tudo o que foi erguido recentemente, bate-nos o reflexo de uma superação e sucesso estrondosos. Enxotou-se a desconfiança, faltará só engolir o olhar paternalista ou visão machista. Mas aí é uma luta eterna, como tantas outras.
Alfredina Silva é um nome que atravessa as batalhas de uma afirmação do futebol feminino em Portugal, que só pôde ser vivido com dignidade e abertura após o 25 de Abril de 1974, embora em 1971 já se fizessem mundialitos pelo mundo. Fez parte do arranque do Boavista, que se torna o clube dominante, vencendo a partir de 1985 a Taça Nacional, rendida em 1992 pela designação de Campeonato. Alfredina era também uma espécie de primeira figura da seleção feminina, que realiza o primeiro jogo com a França em 1981. Avanços e progressos a conta-gotas, também punhaladas na evolução, com a Federação a suspender a atividade da seleção de 1983 a 1993.
"Os constrangimentos que existiam eram ao nível da sociedade em geral, refletia-se no futebol, considerado um desporto masculino. Isso limitava e inibia o desejo de muitas raparigas e mulheres praticarem o futebol e fazerem o que queriam fazer", recorda a treinadora do Boavista, com 61 anos, e uma presença na modalidade que nunca se eclipsou. "Debatíamo-nos com este tipo de mentalidade aliado ao papel social da mulher, o que impediu muitas gerações de terem oportunidade de participar no futebol", relata, situando a natureza dos esforços perante a ordem social. "Institucionalmente o futebol praticado por mulheres era ignorado, embora alguns clubes contrariassem essa tendência e permitissem a sua prática. Como o Boavista que tinha secção aberta a interessadas desde 1967. O reconhecimento só surge pelas associações e pela Federação depois do 25 de Abril, realizando-se em 1978 o primeiro campeonato distrital organizado pela AF Porto, e em 1981 o primeiro encontro nacional, que fez o Boavista e o Coina se defrontarem em Leiria. Mas ainda tivemos a fase negra que o futebol feminino foi suspenso de 1983 a 1993. O que regrediu!", exclama e rebobina Alfredina, numa cronologia imparável, parando no tempo para calcular o impacto de 1974 na sua vida. "Tinha 10 anos e já manifestava a minha paixão pelo jogo no futebol de rua, não pensando especificamente no significado de ser jogadora ou ter uma carreira", evidencia.
Oportunidades, voz e crescimento
Alfredina Silva, treinadora de caráter, com alma vencedora e voz inquieta, resume o que foi o 25 de Abril nas ferramentas para que o futebol fosse escolha e eleição incontestável. "Destaco a alteração do papel social atribuído às mulheres dentro do futebol, uma maior formação das mulheres, ao nível de cursos superiores, a luta pela igualdade de oportunidades, com as mulheres a conseguirem, em democracia, dar voz a situações de desigualdade", sublinha, acrescentando. "Foi uma data que permitiu questionar e dar voz à igualdade de oportunidades. Permitiu maior visibilidade, maior empoderamento das mulheres. Permitiu agitar mentalidades. Permitiu que mais mulheres estivessem em cargos de decisão.
Recuando à infância, a radiografia dos primeiros anos, fervilhava a ânsia de viver e jogar, junta evidências, dilemas e dos choques. A perseverança foi arma essencial.
"Os testemunhos e modelos eram, essencialmente, masculinos dada a falta de praticantes e de quadros competitivos no feminino. A minha referência era o futebol, era a paixão por este jogo, pois sempre via muitos jogos e tentava inspirar-me nisso, trazer as memórias para casa, pegar numa bola e tentar imitar jogadores que admirava", admite, descrevendo o calvário das condições, que desencorajava a dedicação. "Quando em 1976 entrei para um clube, percebi enormes diferenças. Não haviam para as mulheres quadros competitivos organizados, faltavam campos para treinarmos, as horas dos treinos tinham que ser sempre depois dos homens, a visibilidade na comunicação social era inexistente, o público não vibrava com as jogadas ou um ato criativo de uma jogadora, apenas discutiam o tipo de corpo que tinham. Foi necessária muita paixão e coragem para não desistir perante tantas dificuldades", desabafa.
Pantera bem definida, Alfredina foi uma uma jogadora vencedora, com 10 títulos conquistados em três equipas, maioria do Boavista mas também no Gatões e Lobão, e uma treinadora igualmente triunfante com 4 campeonatos logrados, três no Gatões e um no Lobão. As bases foram difíceis mas o destino vingou as pedras no caminho. De uma criança no antigo regime, de uma adolescente no contacto com a liberdade.
"Adorava jogar futebol na rua e no recreio da escola, os meus amigos não me reprovavam e nunca me rejeitaram.
Os adultos mais próximos, talvez porque tivesse jeito, admiravam a minha forma de jogar e diziam muitas vezes “parece um rapaz a jogar”. Isto diz tudo sobre a mentalidade da sociedade, e sobre o facto de uma rapariga jogar futebol", sustenta, enfatizando as marcas do tempo e os obstáculos torneados em prol de um futebol feminino que se profissionalizou nos últimos tempos com uma presença nas decisões da modalidade desde 2017. De gerações que não puderam existir no futebol, a outras mais sofredoras, reféns da precaridade, onde esteve Alfredina, aos êxitos que já glorificam jogadoras.
"Felizmente os meus pais e a minha família sempre me encorajaram a jogar, o que me permitiu viver momentos inesquecíveis de conquistas desportivas e outras que foram e vão muito para além do jogo, de onde destaco mais oportunidades de prática, mais visibilidade, mais condições de prática e, sobretudo, um maior respeito pela jogadora de futebol", observa.