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>A baliza muito fechada e as bocas muito abertas
Se Queiroz fosse a julgamento pelo Espanha-Portugal, as testemunhas de acusação fariam fila pela praça e seriam de todas as cores, feitios e linguagens. Em cada defensor do futebol romântico, a selecção portuguesa - a dado ponto do Mundial transformada em símbolo inesperado do "defensivismo" - encontraria um crítico arrabiado. E mesmo aos espanhóis, de Del Bosque e Aragonês aos grandes comentadores como Santiago Segurola, calhou muito bem que Portugal defendesse o bastante para lhes agigantar o obstáculo e permitir ignorar olimpicamente as insuficiências de Espanha. Na primeira fila de testemunhas estariam, claro, Cristiano Ronaldo, Deco, Hugo Almeida e Nani, quatro jogadores munidos da melhor de todas as razões para arrancar ao tribunal o degredo de Queiroz: a falta de capacidade do seleccionador para lhes manter a boca fechada.
Sobrevivente comatoso de um apuramento traumático, Portugal entrou no Mundial sem Nani nem Bosingwa, fez valer os poucos jogadores que estão efectivamente entre os melhores do mundo - os centrais - e procurou emular uma espécie de manha italiana, imaginando-a como o caminho mais curto para ultrapassar todas as deficiências que carregava. Queiroz teve o azar de lhe ter corrido demasiado bem. Aos 58 minutos do jogo com o campeão europeu (e, há uns dias, candidato número um a campeão do mundo), o modelo fazia sonhar e ninguém queria saber se ofendia ou não as pupilas sensíveis dos Valdanos e Cruyffs. A selecção abananada dos tempos da qualificação e do particular com Cabo Verde desaparecera: estava ali, visível, uma equipa capaz de arrumar a Espanha de Villa, Xavi e Iniesta. Depois, Queiroz, como a máquina de calcular que efectivamente é, obedeceu à programação. Estava na hora de substituir Hugo Almeida, porque os índices de serotonina e a taxa de mercurocromo já deviam estar na reserva, de acordo com a tabela periódica.
Se Nani estivesse no banco, como provavelmente ele perspectivou quando fez a experiência no Football Manager, ninguém teria dado por nada, mas o único jogador veloz disponível era Danny, o grande fiasco do Mundial, já dispensando à larga qualquer necessidade de confirmação. Registada em chapa de impressão em todos jornais portugueses e espanhóis, mais alguns ingleses, franceses, italianos e brasileiros, a mudança fica como a prova de que Queiroz não foi capaz de ver o que era claro, naquele momento, para todos os outros. Nem a evidente inutilidade de Danny nos jogos anteriores. Puxada por essa intervenção autoflageladora, as análises trouxeram a julgamento a outra, de que até o seleccionador espanhol, Vicente del Bosque, achou por bem zombar: a utilização de um mito chamado Ricardo Costa na posição de lateral-direito, por onde correu, como a Heidi nos Alpes, o mais perigoso jogador espanhol. Ajudada por Eduardo, a selecção poderia ter feito valer a fórmula e Ricardo Costa talvez até acabasse por passar apenas por um resistente estóico à energia de David Villa; fracassado o golpe, salta de debaixo do tapete toda a poeira que se varreu para lá. É preferível um central de terceira categoria (até pela falta de consciência das limitações e por ter acabado o jogo a chamar a atenção para a "impressionante estatística de desarmes") a dois laterais-direitos de segunda categoria? Mais uma vez, como Nani, Bosingwa teria impossibilitado o debate, quer Portugal perdesse, quer Portugal ganhasse. Os problemas do Espanha-Portugal já a selecção os tinha há duas semanas.
Uma boa parte disto é apenas opinião e juízo de valor, quase inúteis num assuno tão importante, mas Cristiano Ronaldo, Deco, Hugo Almeida e Nani, sobretudo estes, responderam melhor do que ninguém à questão da continuidade do seleccionador, com matéria concreta e objectiva. Não querem Queiroz e estão cheios de razão até à raiz dos cabelos, à prova de caspa no caso de Ronaldo. Independentemente da permanência, ou não, do professor, quem não pode, de certeza, mandar na selecção são eles. E mandaram. Discutiram ordens em público, criaram dúvidas sem concretizar acusações e até afirmaram, preto no branco, que a eliminação foi culpa dele. A principal dúvida a respeito deste seleccionador, limpa de qualquer subjectividade ao contrário de outras, é a de que seja capaz de reduzir os jogadores à obediência. Fica como um símbolo do Mundial'2010 a cobertura que a RTP fez do banco português no jogo de anteontem. A certo ponto da segunda parte, Queiroz berra a Ronaldo, e repete o berro várias vezes, ordenando-lhe que se desloque mais para a direita. A impaciência crescente com que o faz é esclarecedora sobre o resultado da instrução. Mas quando se fala dos dois ou três anos de inutilidade material de Ronaldo na Selecção, a incapacidade de o fazer render sequer perto do que rende nos clubes é dos dois últimos seleccionadores. Não importa se os motivos são técnicos, tácticos, disciplinares ou psicológicos: quanto mais se culpar Ronaldo, mais se culpa Queiroz.