O futebol é uma paixão, dizem. Atrai e faz com que todas as dificuldades sejam superadas. A mais recente prova disso foi a atitude de oito atletas do Grupo Desportivo Malveira da Serra: viajaram quase 300 quilómetros até Albufeira, para disputar um jogo de 94 minutos em inferioridade numérica. O resultado final foi 14-0, mas nesta história isso é o que menos importa
Corpo do artigo
Foi num "domingo atípico", a 22 de janeiro, que o Guia Futebol Clube recebeu o Malveira da Serra, na 11.ª jornada do Campeonato Nacional de Promoção Feminino. "Algumas não conseguiram folgas e temos três atletas com lesões graves que só regressam à competição para o ano", conta o treinador do Malveira, Fernando Moreira, contextualizando os motivos que lhe "roubaram" a disponibilidade das jogadoras. Mesmo sendo poucas, nunca pensaram em desistir. "Se calhar, 90% dos clubes pagava a multa por falta de comparência, perdia por 3-0 e passava a jornada. Mas decidimos lutar até ao fim, sabendo que ia ser um jogo difícil. Estamos cá para lutar e fazer o que mais gostamos", diz.
"Elas foram impecáveis. Fomos porque queríamos jogar. Não queríamos baixar os braços. Temos de superar as dificuldades e mostrar que o futebol feminino está vivo e precisa de apoio", apela Fernando.
O técnico é o eco daquilo que pensam as suas "guerreiras". "Não fazia sentido desistir. Estamos aqui para jogar", concorda Rita Guedes, a capitã do grupo. No rescaldo do jogo, e contra o que seria de esperar, Rita destaca aspectos positivos. "Emocionalmente foi bom. Fomos equipa e estivemos unidas. Foi difícil para quem fez a lateral, que chegou ao fim exausta. Tivemos de correr por quem não estava lá, mas recuperámos. Ainda por cima, os quatro minutos de compensação... já não bastavam os 90, ainda nos deram esse bónus."
Este jogo, com o Guia, foi o mais problemático, aquele em que tiveram menos jogadoras em campo. Porém, não foi caso único. "Já jogámos com 10", conta Rita. A 5 de fevereiro, foram a Castro Verde, no Alentejo, defrontar a equipa feminina local com apenas 12 jogadoras no autocarro. "Nesse dia podia fazer uma substituição", brinca o treinador.
O empenho deste grupo, no Algarve, reduzido a oito elementos mereceu o elogio do clube adversário. Na sua página do Facebook, o Guia reconheceu que somou "mais três pontos, mas as grandes lutadoras foram as oito jogadoras da formação da Malveira da Serra que se apresentaram no estádio prontas a lutar e a dignificar o símbolo que têm ao peito". "Foi, sem dúvida, um orgulho dividir o campo com vocês e é uma inspiração para qualquer equipa ver a vossa garra! O Guia Futebol Clube aplaude, de pé, a vossa atitude", lê-se na publicação na rede social.
O treinador do Guia, João Santos, sabe que, "apesar do enorme crescimento do futebol feminino no país", continuam a persistir dificuldades. "Tem de se repensar o campeonato, porque elas não são profissionais, para aproveitar a capacidade de crescimento que o futebol feminino tem em Portugal", sugere. Até pela a paixão e pelo gosto pelo futebol que "elas têm", considera.
Para Fernando Moreira, a preocupação imediata é o número de jogadoras disponíveis. Longe dos grandes palcos, o futebol é vivido com sacrifício e dificuldades. Dos clubes e, principalmente, das atletas. O Grupo Desportivo Malveira da Serra, afiança, "tem todas as condições para treinarem, embora não haja uma aposta tão grande nas meninas nas camadas jovens como há para os rapazes". Ainda assim, gostaria que os clubes "percebessem que têm de lhes dar o mesmo que dão ao futebol masculino". No segundo ano em que está à frente deste projeto - para trás deixou a família e Viseu -, Fernando Moreira viu reduzir quase para metade o número de praticantes.
"Malveira da Serra é do concelho de Cascais, mas não há transportes públicos até ao local dos treinos e as atletas têm de custear tudo. No ano passado tinha entre 20 a 22 atletas. Algumas tiveram de sair por motivos profissionais. Fizemos captações, mas não conseguimos atrair muitas raparigas. Inscritas, no início da época, estavam 18 atletas. Neste momento temos 14 jogadoras. Algumas foram desistindo porque não conseguem conciliar o trabalho ou a faculdade com os treinos e os jogos. Para ir aos jogos têm de pedir troca de folgas. Algumas entidades patronais percebem, outras não, até porque as lesões levam a que elas entrem de baixa", explica o técnico.
Rita é central e cumpre a sua terceira época como atleta. Trabalha num escritório, tendo, por isso, uma maior liberdade de horários para poder comparecer aos treinos e jogos. Não consegue explicar bem o que a atrai no futebol e a faz continuar, mas talvez seja o facto de dependerem "umas das outras, o saber que cada uma tem um papel a desempenhar, o espírito de equipa que se desenvolve". Gosta de falar com as colegas e, por ser das mais velhas - com 27 anos, num grupo onde as mais novas apenas têm 17 - é tratada como a mãe das restantes. Gosta de falar com as companheiras individualmente, porque "cada jogadora é diferente".
E os jogos com oito, dez ou 12 jogadoras são para disputar. "Estamos aqui para ganhar. A força tem de estar cá sempre. As que estiverem vão honrar o emblema que trazem ao peito", garante Rita, confirmando a ideia transmitida pelo seu treinador de que "o futebol feminino está vivo" apesar das dificuldades.
Ah, já agora, o Guia venceu por 14-0. Mas, isso, pouco importa!
Guia elogia a "bravura"
"Estava a dar a palestra à equipa, quando o diretor entrou e me informou que a equipa do Malveira da Serra só tinha oito jogadoras. Foi uma surpresa." É desta forma que o treinador João Santos recorda o dia 22 de janeiro. Com mais de duas décadas como treinador, conta que esta foi uma situação inédita. "Durante o jogo, as equipas podem ficar com menos jogadoras em campo, mas logo de início? Nunca me tinha acontecido."
O técnico algarvio ficou ainda mais espantado com o passar dos minutos, porque julgava, tal como acontecera noutros jogos de inferioridade, que não aguentariam mais de um quarto de hora.
"Aguentaram o desgaste físico e anímico. O adversário mostrou um enorme respeito por nós, fazendo o jogo todo com atletas que não estavam fisicamente bem e na segunda parte tiveram de ser assistidas muitas vezes. Foram de uma bravura excelente. Ficámos com admiração por todas elas", enaltece o treinador que pediu à sua equipa "respeito" e "disponibilidade", como resposta ao esforço das oponentes.
"As carrinhas são mais velhas do que nós"
Malveira da Serra está inserida na área metropolitana de Lisboa, mas sofre com a falta de transportes públicos até ao Campo 22 de Março, do Grupo Desportivo. As deslocações ficam a cargo das atletas e familiares, fator que pesa na hora de decidir a continuidade da prática desportiva. O clube, diz o presidente Jorge Matos, carece de "meios de transporte próprios para ir buscar as atletas. Precisávamos, pelo menos, de duas carrinhas. Temos carrinhas, mas são mais velhas do que nós e não servem de grande coisa", revela. Há algum benemérito a ler?