"Para Putin, não existe o povo ucraniano. Acha que somos todos iguais, como na União Soviética"
Longe ou perto, a iminência de um choque efetivo entre os dois países tem mexido com os ucranianos que vivem em Portugal, como é o caso dos técnicos Andrii Melnychuk (basquetebol) e Yuriy Kostetskyy (andebol); e com os portugueses que já passaram pelo país de Leste, numa fase em que a rivalidade não estava tão acesa.
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Portugal tem perto de meia centena de atletas ucranianos em vários escalões das principais modalidades coletivas (futebol, futsal, basquetebol, andebol e voleibol) que, por estes dias, não ficam indiferentes ao conflito iminente entre o seu país de origem e a Rússia. A tensão entre os dois países está a atingir o ponto mais alto desde 2014, ano da anexação da Crimeia por parte dos russos, acusados de agora terem, pelo menos, 150 000 soldados nas fronteiras com o país-vizinho, na iminência de o invadir. Os Estados Unidos deram o alerta, a União Europeia já anunciou o envio da ajuda humanitária para a Ucrânia e países como França, Alemanha, Reino Unido e Áustria recomendaram fortemente a saída do país de Leste, onde membros do exército local e separatistas se culpam mutuamente por bombardeamentos.
"Ele [Putin] acha que somos todos iguais, como na URSS. Vivi no tempo da União Soviética e não desejo essa experiência aos outros"
O luso Edgar Cardoso, coordenador da Academia do Shakhtar, clube forçado a fugir de Donetsk há quase oito anos, diz que em Kiev há "um ambiente calmo, sem reforço de segurança e mantendo-se a atividade desportiva - treinos e jogos - sem alterações". Apesar de estar "a uma distância considerável do epicentro" do conflito, o técnico conta que "o contacto com a embaixada tem sido regular e a família está em Portugal por recomendação do governo". A milhares de quilómetros, o clã Melnychuk, Andrii e Valentyn, e Yuriy Kostetskyy, com ligações de mais de duas décadas a Portugal, onde recomeçaram as suas vidas, acompanham com cautela a rivalidade que pode resultar numa guerra na Europa, realçando a resposta destemida que os ucranianos vão dando. "Temos direito de ter a nossa independência, a nossa história, a nossa cultura num país democrático", vinca Andrii Melnychuk a O JOGO. Dos três anos e meio que passou a trabalhar na Ucrânia, José Boto nunca se sentiu inseguro, mas admite que o panorama se deteriorou nos últimos tempos.
Andrii Melnychuk: "Vivemos ao lado de um monstro"
Filho de Valentyn Melnychuk, o selecionador nacional que conduziu Portugal ao histórico nono lugar no Eurobasket"2007, Andrii Melnychuk chegou a Portugal em 1998, por influência do pai, que imigrara cinco anos antes. "Acabei o meu curso. Comecei a trabalhar como professor na Universidade de Educação Física, mas o meu ordenado ficou em 10 euros. Deixei de ser professor e comecei a fazer outras coisas para sobreviver. Na altura, o meu pai fez-me uma proposta de mudar para Portugal, para experimentar", recorda o técnico.
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O único filho, Artem, veio com ele, tinha então dois anos de idade. Desde então já jogou no Eléctrico, sendo um dos três atletas de origem ucraniana no basquetebol português, a par de Vlad Voytso (FC Porto) e Oleksandr Varha (Maria Pia). "A minha família tem dupla nacionalidade, somos portugueses, mas nunca deixámos de ser ucranianos. Temos o azar de viver ao lado de um monstro, que nunca nos deixou ficar em paz. Para o presidente da Rússia, não existe o povo ucraniano. Ele acha que somos todos iguais, como na União Soviética. Vivi no tempo da União Soviética e, digo a verdade, não desejo essa experiência aos outros. Até fico nervoso quando falo sobre este problema. Estou tão longe, mas vejo notícias e é difícil concentrar-me muitas vezes", relata Andrii Melnychuk, que atualmente dirige o Centro Nacional de Treino da Federação Portuguesa de Basquetebol, localizado em Ponte de Sôr e que reúne as melhores promessas nacionais.
A quase 4000 quilómetros de distância, o treinador acompanha "as notícias da Ucrânia, mas também da Rússia, para perceber o que eles têm na cabeça", recordando que "o conflito já tem muitos anos", o que faz com que os ucranianos procurem ter um dia a dia normal. "Falei com uma amiga que fez anos e, mesmo com as notícias de que a Rússia vai atacar a Ucrânia, a família juntou-se toda. A vida continua. Há algum nervosismo, mas esta situação tem bem mais do que um mês e o povo está cansado", descreve, aliviado por ter conseguido trazer os pais para Portugal no último verão, depois de dois anos sem ir à Ucrânia. Valentyn Melnychuk ainda colabora com a federação do seu país, na tradução de textos em inglês e espanhol. "Juntámos a família. Os meus pais estão cá. A mãe da minha mulher também está fora da Ucrânia. Por isso, agora não temos lá família. A nossa ideia é continuar cá. Estamos bem aqui e eu gosto do que faço", assegura.
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