O último clube que Eurico Gomes treinou foi o Al Raed na Arábia Saudita. O campeão pelos três grandes de Portugal ainda tem esperança de vir a ser contratado para treinador de um clube português de grande dimensão. Enquanto isso não acontece, vai gerindo e espalhando simpatia pelos dois bares que tem na cidade do Porto.
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Foi no seu novo bar-discoteca, o Memory"s Club Oporto, inaugurado há três meses com a presença de Herman José - "preço de amigo, mas a pagar" - que encontrei Eurico Gomes, campeão nacional pelos três grandes, o mesmo que tem um programa de televisão pronto a ser comprado, mas, antes disso, a esperança de ainda vir a ser contratado como treinador para uma equipa de topo em Portugal.
Roberto Carlos é o seu preferido. E logo a seguir Paulo Gonzo. Eurico Gomes tem outro talento além do futebol. Canta e anima muitas das noites dos dois espaços noturnos que tem no Porto. Recentemente abriu o Memory"s Club Oporto, onde uma das paredes está decorada com molduras. Apenas molduras, sem qualquer conteúdo. O antigo jogador e treinador diz que, desse modo, cada pessoa pode construir nesse espaço as suas próprias memórias. Só num dos caixilhos de madeira se vê a figura de um jogador de futebol sem rosto...
Ser Eurico Gomes ajuda-o nos negócios? Atrai-lhe mais clientes?
Não sinto esse efeito. As pessoas dizem-me que vêm com agrado à minha casa, mas não beneficio com mais clientela por ser minha. Quem fica fá-lo pela casa. Preocupo-me que as pessoas se sintam bem.
Qual é a sua profissão neste momento?
Treinador de futebol. Mas ainda voltando à pergunta anterior, não quero que as pessoas julguem que estou no futebol por vaidade ou interesse, tenho mesmo horror a isso. As pessoas costumam perguntar-me por que não utilizo mais o facto de ter sido jogador. Mas não tenho de o fazer. Tenho a minha história. Se eu quero saber quem foi Luís de Camões ou D. Afonso Henriques, vou ler e fico a saber o que eles representaram para o país. Não utilizo o meu nome na atividade empresarial, que tenho 80% por necessidade. E também por culpa do futebol, porque se eu fosse um treinador de topo...
Quando teve o seu primeiro negócio?
Tive sempre negócios ainda jogava. Tudo começou quando parti a perna, não tinha a certeza de recuperar a 100%. Tinha o meu nome relativamente forte e pensei fazer alguma coisa para me salvaguardar. Tive também um armazém de vinhos e de produtos alimentares. Felizmente recuperei e voltei ao futebol, fui terminar a carreira em Setúbal. A minha história terminou nas grandes equipas, fiz algo de único, que me honra bastante, mas da qual não tenho proveito nenhum. Pelo contrário.
Por que diz isso?
O Bobby Robson deu-me, uma vez, um autógrafo num livro sobre os cem melhores do século. Ele, percebendo o meu currículo, disse-me que em Inglaterra, com o meu percurso, tinha trabalho toda a vida e ainda uma estátua. Em Portugal é o oposto.
Mas por que acha isso?
Ao fim de todos estes anos, o único erro que cometi foi não ter esperado um ou dois anos e só começar a treinar num clube grande. Na época, fui entusiasmado para terminar a época do Rio Ave, achei que seria bom para ensaiar a nova fase da minha carreira como treinador. Logo no Rio Ave fiz um trabalho extraordinário, salvei a equipa da descida e catapultei-a para outros patamares. Hoje, sou uma pessoa que registo o facto de não ter valido a pena ter sido sempre correto. E começamos logo por aí...
Acha que não se "vendeu" bem?
Nada fiz para que nunca tenha tido convites para treinar na I liga em Portugal, mas também não ando atrás de ninguém, não ando nem com fisgas nem com pistolas a matar ninguém. Tenho sido sempre uma pessoa muito coerente e vou morrer assim: íntegro e com a espinha direita. Em Portugal teve efeitos negativos na minha carreira. Não rastejo, não dou graxa, não vou lá acima como alguns amigos me dizem para fazer.
O que é isso de "ir lá acima"?
Já pedi naturais apoios junto das pessoas que estão colocadas nas posições corretas, algumas delas importantes. Mas resultados zero.
Não aceitaria se aparecesse um convite da II Liga neste momento?
Só se sentisse que era um projeto sólido. As pessoas já se esqueceram de que fui campeão no Tirsense com 14 pontos de vantagem sobre o segundo lugar, na Divisão de Honra.
Acha que tem o mesmo nível de qualidade como treinador do que teve como jogador?
Pelé e Eusébio não deram treinadores, o Maradona tem dificuldades. Se analisar os resultados na minha carreira, verifica que fui sempre melhor do que os treinadores que substituí e os que me substituíram nunca foram melhores do que eu. Isso diz tudo do meu trabalho como treinador. Devo ter sido o único que exigi a saída dos balneários de um presidente de um clube, neste caso o do Rio Ave, porque estava a insultar os meus jogadores sem justificação nenhuma. Há coisas de que não abdico.
Se estivesse a treinar um dos três grandes, onde os presidentes são figuras de poder muito fortes, se calhar podia correr mal...
Isso não é verdade, era muito mais compatível comigo, porque nos grandes não se passa o mesmo que nos pequenos. Tive a honra de trabalhar com Pinto da Costa no FC Porto, como jogador. E é superexemplar, foi sempre supercorreto com todos os treinadores. Nos grandes clubes, os grandes presidentes têm uma postura correta, têm um "staff", são pedagogicamente corretos. O mesmo acontece com Luís Filipe Vieira e acho que também com Bruno de Carvalho. Nos clubes de grande dimensão, a grandeza passa também para o presidente. E aí, eu estou como peixe na água, porque essa foi a minha universidade. Em clubes como FC Porto, Benfica, Sporting, Real Madrid, Bayern de Munique ou Milan é que me sinto como peixe na água, sei com facilidade perceber que esse é o meu mundo, o meu discurso.
Portanto, no fundo está a pedir uma oportunidade num clube de topo.
Paulo Fonseca, por exemplo, teve a oportunidade que eu nunca na vida tive. Fiz um grande trabalho no Tirsense, salvei equipas quase milagrosamente, como o Paços de Ferreira. Estarei muito mais bem preparado do que qualquer outro treinador, mas não tenho entrada em nenhum clube grande, até parece que sou um bandido.
Alguém o faz sentir assim?
Acha normal nunca ter recebido um convite de um clube da I liga? Só trabalhei no Tirsense, que subi à I divisão, e no Leiria, convidado para substituir um treinador. Não terei condições mínimas para, pelo menos, ser convidado e mostrar, como todos os outros, se tenho competências ou não?
Se o convidassem agora para substituir um treinador da I Liga?
Iria analisar com muito carinho.
Preferia ficar aqui do que ir para o estrangeiro?
Sempre. Acho que mereço pelo menos mostrar que não sou capaz e isso só com uma oportunidade. Como se justifica que um homem do futebol, com a experiência que tenho em Portugal, e um comportamento impoluto, não tenha a oportunidade de trabalhar no seu país? Não terei lugar na estrutura do Benfica, do Sporting ou da Seleção Nacional? E tenho a certeza de que se me derem uma oportunidade de trabalho eu não falho.
A pergunta inevitável: em qual dos três grandes gostou mais de jogar?
Não distingo os três clubes da minha vida. Para isso, teria de estar a distinguir os adeptos. Quando se é idolatrado por todos, toda a gente me respeita e tem palavras amigas, tenho de dizer que sou dos três. O único campeão pelos três clubes grandes em Portugal e até na Europa. Mas sou um único esquecido, um único encostado. Há, contudo, uma coisa que digo a todos: não esqueço o meu berço, que foi o Benfica
4000
Eurico Gomes nasceu em Santa Marta de Penaguião, Vila Real, e tem atualmente 59 anos. Quando tinha nove, o pai pegou em toda a família e mudou-se para Lisboa, para Póvoa de Santo Adrião, onde conheceu Luís Filipe Vieira, também, então, um adolescente. Quando o Benfica apareceu interessado, Eurico ganhava 2500 escudos [cerca de 12,5 euros] como aprendiz numa oficina de automóveis e o clube da Luz não queria oferecer mais do que 500 escudos [2,5 euros]. Joga no Várzea e no Odivelas, mas o seu desempenho faz com que os encarnados subam a parada: 4000 escudos [20 euros] e Eurico torna-se atleta juvenil das águias.
SAIBA QUE
Eurico Gomes tem um programa televisivo registado, que "nunca ninguém ousou fazê-lo". "É um programa na primeira pessoa, onde levaria dois convidados meus. Chama-se Míster Futebol, tem um logótipo muito original", afirmou, explicando ponderar enveredar por outras carreiras para salvaguardar a sua vida o mais possível. "Estou dececionado com o futebol português, mas cansado do estrangeiro", comentou, revelando ter também "uma escola pronta a avançar". "É mais um laboratório de alto rendimento e motivacional, para receber atletas que estão à espera que serem colocados num clube. O que falta para abrir essa escola? Tomar a decisão: desacreditar em absoluto que não vou ter mais hipóteses de treinar em Portugal, que ainda me está a custar admitir."
OBSERVOU O CELTA
DE VIGO, MAS HEYNCKES
NÃO QUIS RELATÓRIO
Contratado para técnico adjunto do Benfica em 1999, Eurico Gomes diz ter sido tramado por Martin-Delgado, que Jupp Heynckes trouxera consigo do Real Madrid para ser seu braço direito. "Ficou com muito medo da minha presença na equipa técnica, encheu as orelhas ao Heynckes e o treinador então disse que não precisava de mim para nada", recordou Eurico Gomes, explicando que foi o presidente Vale e Azevedo que lhe confiou, então, as funções de observador. "Não era o que queria, mas fazia-o com muito profissionalismo e ainda hoje tenho as cópias de todos os relatórios que fiz. O único relatório que Heynckes não aceitou foi o do Celta de Vigo-Benfica (7-0). Disse que não precisava do meu relatório, pois tinha Martin-Delgado, seu adjunto, que sabia tudo do Celta de Vigo. Como são as coisas!", afirmou Eurico. "Fui um bocado humilhado. Em prol do Benfica e da minha profissão aceitei, mas no segundo ano desisti."
Publicado na Revista J de 30/11/2014